Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-13r)

A vida, para a maioria dos homens


L. do D.


A vida, para a maioria dos homens, é uma maçada pas-
sada sem se dar por isso, uma coisa triste composta de in-
tervallos alegres, qualquer coisa como os momentos de anec-
dotas que contam os veladores de mortos, para passar o so-
cego da noite e a obrigação de velar. Achei sempre futil
considerar a vida como um valle de lagrimas: é um valle de
lagrimas, sim, mas onde raras ve-
zes se chora. Disse Heine que, depois das grandes
tragedias, acabamos sempre por nos assoar. Como judeu, e
portanto universal, viu com clareza a natureza universal
da humanidade.

A vida seria insupportavel se tomassemos conscien-
cia d'ella. Felizmente o não fazemos. Vivemos com a mesma
inconsciencia que os animaes, do mesmo modo futil e inutil,
e se anticipamos a morte, que é de suppor, sem
que seja certo, que elles não anticipam, anticipamol-a a-
travez de tantos esquecimentos, de tantas distracções e
desvios, que mal podemos dizer que pensamos nella.

Assim se vive, e é pouco para nos julgarmos superio-
res aos animaes. A nossa differença d'elles consiste no
pormenor puramente externo da fallarmos e escrevermos, de
termos intelligencia abstracta para nos distrahirmos de a
ter concreta, e de imaginar coisas impossiveis. Tudo isso,
porém, são accidentes do nosso organismo fundamental. O
fallar e escrever nada fazem de novo no nosso instincto
primordial de viver sem saber como. A nossa intelligencia
abstracta não serve senão para fazer systemas, ou idéas
meio-systemas, do que nos animaes é estar ao sol. A nossa
imaginação do impossivel não é porventura propria, pois
já vi gatos olhar para a lua, e não sei se não a quereriam.

Todo o mundo, toda a vida, é um vasto systema de
inconsciencias operando atravez de consciencias in-
dividuaes. Assim como com dois gazes, passando por elles
uma corrente electrica, se faz um liquido, assim com duas
consciencias — a do nosso ser concreto e a do nosso ser
abstracto — se faz, passando por ellas a vida e o mundo,
uma inconsciencia superior.

Feliz, pois, o que não pensa, porque realiza por
instincto e destino organico o que todos nós temos que
realizar por desvio e destino inorganico ou social. Feliz
o que mais se assemelha aos brutos, porque é sem exforço
o que todos nós somos com trabalho imposto; porque sabe
o caminho de casa, que nós outros não encontramos senão
por atalhos de ficção e regresso; porque, enraizado como
uma arvore, é parte da paisagem e portanto da belleza, e
não, como nós, mythos da passagem, figurantes de trapo
vivo da inutilidade e do esquecimento.

                                        23/3/1933.