Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(340)

Se alguma coisa ha


29/11/1931.
L. do D.

Se alguma coisa ha que esta vida tem para nós, e, salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses, é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros. A alma humana é um abysmo obscuro e viscoso, um poço que se não usa na superficie do mundo. Ninguem se conhece[,] pois, se se conhecesse, se não amaria, e assim, não havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual, se fraca[,] a alma morrer-nos-hia de fraqueza. Ninguem conhece outro, e ainda bem que não o conhece, e, se o conhecesse, conheceria nelle, ainda que fôsse mãe, mulher ou filho, o intimo, metaphysico inimigo.

Entendemo-nos porque nos ignoramos. Que seria de tantos casados felizes se pudessem vêr um na alma do outro, se pudessem comprehender-se, como dizem os romanticos, que não sabem o perigo — se bem que o perigo futil — do que dizem. Todos os casados do mundo são mal casados, porque cada um guarda comsigo, nos secretos onde a alma é do Diabo, a imagem subtil do homem desejado que não é aquelle, a figura voluvel da mulher por achar, que aquella não realizou. Os mais felizes ignoram em si mesmos estas suas disposições frustradas; os menos felizes não as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou outro arranco fruste, uma ou outra aspereza no assomo, evoca, na superficie casual dos gestos e das palavras, o Demonio occulto, a Eva antiga, o Cavalleiro e a Sylphide.

A vida que se vive é um desentendimento fluido, uma media alegre entre a grandeza que não ha e a /felicidade/ que não pode haver. Somos contentes porque, ainda ao pensar e ao sentir, somos capazes de não pressupor a existencia da alma. No baile de mascaras que vivemos, basta-nos a intuição do traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes e das côres, vamos na dança como na verdade, nem ha para nós — salvo se, desertos, não dançamos — conhecimento do grande frio alto da noite externa, do corpo mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem, de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente nós, mas afinal não é senão a parodia intima da verdade do que nos suppomos.

Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pensamos ou sentimos, traz a mesma mascara e o mesmo dominó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca chegamos á nudez, pois a nudez é um phenomeno da alma e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma, com os nossos multiplos trajes tam pegados a nós como as pennas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos dão os deuses para os divertirmos, como creanças sob olhos adultos que brincam serias a jogos regrados.

Um ou outro de nós, liberto ou maldicto, vê de repente — mas até esse raras vezes vê — que tudo quanto somos é o que não somos, que nos enganamos no que está certo e não temos razão no que concluimos justo. E esse, que, num breve momento, vê o universo despido, falla uma philosophia, ou canta uma religião; e a philosophia escuta-se e a religião echoa-se, e os que creem na philosophia passam a usal-a como veste que não vêem, e os que creem na religião passam a pol-a como mascara de que se esquecem.

E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros, e porisso entendendo-nos alegremente, passamos nas volutas da dança ou nas conversas do descanço, humanos, futeis, a serio, ao som da grande orchestra dos astros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos organizadores do espectaculo.

Só elles sabem que nós somos presas da illusão que nos crearam. Mas qual é a razão d'essa illusão, e por que é que ha essa, ou qualquer, illusão, ou por que e que elles, illusos tambem, nos deram que tivessemos a illusão que nos deram — isso, porcerto, elles mesmos não sabem.