29/11/1931.
∧L. do D.
Se alguma coisa ha que esta vida tem para nós, e,
salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses,
é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos
a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros.
A alma humana é um abysmo obscuro e viscoso, um poço
que se não usa na superficie do mundo. Ninguem se ama-
ria a si mesmo se deveras se conhecesse∧conhece
∧pois, se se conhecesse, se não amaria, e assim, não
havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual,
morreriamos ∧na alma de anemia. ∧se fraca a alma morrer-nos-hia de anemia ∧fraqueza.
Ninguem conhece outro, ∧e ainda bem que não o conhece, e,
se o conhecesse, conheceria ∧nelle, ainda que fôsse
mãe, mulher, ou filho, o intimo, metaphysico inimigo.
Entendemo-nos porque nos ignoramos. Que seria de
tantos conjuges ∧casados felizes se pudessem vêr um na alma do
outro, ∧se pudessem comprehender -se∧,, como dizem os romanticos,
que
não sabem o perigo — se bem que o perigo futil — do
que dizem. Todos os casados do mundo são mal casados,
porque cada um guarda comsigo,
nos secretos onde a al-
ma é do Diabo, a imagem subtil do homem ∧desejado que não
é aquelle,
a figura voluvel da mulher sublime ∧por achar∧, que a-
quella não realizou. Os mais felizes ignoram em si mes-
mos estas suas disposições frustradas; os menos feli-
zes não as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou
outro arranco fruste, uma ou outra aspereza no trato ∧assomo,
evoca, na superficie ∧casual dos gestos e das palavras, o ∧D e-
monio occulto,
a Eva antiga, o Cavalleiro
e ∧ou a Sylphide.
2.
A vida que se vive é um desentendimento fluido,
uma media alegre entre a grandeza que não ha e
(felicidade) que não pode haver. Somos
contentes porque, até ∧ainda ao pensar e ao sentir, somos
capazes de não acreditar na ∧pressupor a existencia da alma. No
baile de mascaras que vivemos, basta-nos o agrado ∧a sensação ∧a intuição do
traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes
e das côres,
vamos na dança como na verdade, nem ha
para nós — salvo se, desertos, não dançamos — conhe-
cimento do grande frio alto da noite externa, do cor-
po mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem,
de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente
nós, mas afinal não é senão a parodia intima
da verdade do que nos suppomos.
Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pen-
samos ou sentimos, traz a mesma mascara e o mesmo do-
minó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca che-
gamos á nudez, pois a nudez é um phenomeno da alma
e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma,
com os nossos multiplos trajes tam pegados a nós como
as pennas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou
nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos
dão os deuses para os divertirmos, como creanças ∧sob olhos adultos que
brincam ∧serias a jogos serios ∧regrados.
Um ou outro de nós, liberto ou maldicto,
vê de
repente — mas até esse raras vezes vê — que tudo quan-
to somos é o que não somos, que nos enganamos no que
está certo e não temos razão no que concluimos justo.
E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros,
e porisso entendendo-nos alegremente, passamos, nas
volutas da dança ou nas conversas do descanço, humanos,
futeis,
a serio,
ao som da grande orchestra dos as-
tros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos orga-
nizadores do espectaculo.
Só elles sabem que nós somos presas da illusão
que nos crearam.
Mas qual é a razão d'essa illusão,
e porque é que ha essa, ou qualquer, illusão, ou por
que é que elles, illusos tambem,
nos deram que tives-
semos a illusão que nos deram — isso, porcerto, elles
mesmos não sabem.