Semântica da Vida - Usa (BNP/E3, 4-26r-27r-28r)

Se alguma coisa ha que esta vida tem


                                    29/11/1931.
L. do D.

Se alguma coisa ha que esta vida tem para nós, e,
salvo a mesma vida, tenhamos que agradecer aos Deuses,
é o dom de nos desconhecermos: de nos desconhecermos
a nós mesmos e de nos desconhecermos uns aos outros.
A alma humana é um abysmo obscuro e viscoso, um poço
que se não usa na superficie do mundo. Ninguem se ama-
ria a si mesmo se deveras se conhecesseconhece
pois, se se conhecesse, se não amaria, e assim, não
havendo a vaidade, que é o sangue da vida espiritual,
morreriamos na alma de anemia. se fraca a alma morrer-nos-hia de anemia fraqueza.
Ninguem conhece outro, e ainda bem que não o conhece, e,
se o conhecesse, conheceria nelle, ainda que fôsse
mãe, mulher, ou filho, o intimo, metaphysico inimigo.

Entendemo-nos porque nos ignoramos. Que seria de
tantos conjuges casados felizes se pudessem vêr um na alma do
outro, se pudessem comprehender -se,, como dizem os romanticos, que
não sabem o perigo — se bem que o perigo futil — do
que dizem. Todos os casados do mundo são mal casados,
porque cada um guarda comsigo, nos secretos onde a al-
ma é do Diabo, a imagem subtil do homem desejado que não
é aquelle, a figura voluvel da mulher sublime por achar, que a-
quella não realizou. Os mais felizes ignoram em si mes-
mos estas suas disposições frustradas; os menos feli-
zes não as ignoram, mas não as conhecem, e só um ou
outro arranco fruste, uma ou outra aspereza no trato assomo,
evoca, na superficie casual dos gestos e das palavras, o D e-
monio occulto, a Eva antiga, o Cavalleiro
e ou a Sylphide.


                                            2.
A vida que se vive é um desentendimento fluido,
uma media alegre entre a grandeza que não ha e
(felicidade) que não pode haver. Somos
contentes porque, até ainda ao pensar e ao sentir, somos
capazes de não acreditar na pressupor a existencia da alma. No
baile de mascaras que vivemos, basta-nos o agrado a sensação a intuição do
traje, que no baile é tudo. Somos servos das luzes
e das côres, vamos na dança como na verdade, nem ha
para nós — salvo se, desertos, não dançamos — conhe-
cimento do grande frio alto da noite externa, do cor-
po mortal por baixo dos trapos que lhe sobrevivem,
de tudo quanto, a sós, julgamos que é essencialmente
nós, mas afinal não é senão a parodia intima
da verdade do que nos suppomos.

Tudo quanto fazemos ou dizemos, tudo quanto pen-
samos ou sentimos, traz a mesma mascara e o mesmo do-
minó. Por mais que dispamos o que vestimos, nunca che-
gamos á nudez, pois a nudez é um phenomeno da alma
e não de tirar fato. Assim, vestidos de corpo e alma,
com os nossos multiplos trajes tam pegados a nós como
as pennas das aves, vivemos felizes ou infelizes, ou
nem até sabendo o que somos, o breve espaço que nos
dão os deuses para os divertirmos, como creanças sob olhos adultos que
brincam serias a jogos serios regrados.

Um ou outro de nós, liberto ou maldicto, vê de
repente — mas até esse raras vezes vê — que tudo quan-
to somos é o que não somos, que nos enganamos no que
está certo e não temos razão no que concluimos justo.


                                                3;


E esse, que, num breve momento, vê o universo despido,
cria falla uma philosophia, ou sonha canta uma religião; e a phi-
losophia espalha-se escuta-se e a religião propaga-se echoa, e os que
creem na philosophia passam a usal-a como veste que
não vêem, e os que creem na religião passam a pol-a
como mascara de que se esquecem.

E sempre, desconhecendo-nos a nós e aos outros,
e porisso entendendo-nos alegremente, passamos, nas
volutas da dança ou nas conversas do descanço, humanos,
futeis, a serio, ao som da grande orchestra dos as-
tros, sob os olhares desdenhosos e alheios dos orga-
nizadores do espectaculo.

Só elles sabem que nós somos presas da illusão
que nos crearam. Mas qual é a razão d'essa illusão,
e porque é que ha essa, ou qualquer, illusão, ou por
que é que elles, illusos tambem, nos deram que tives-
semos a illusão que nos deram — isso, porcerto, elles
mesmos não sabem.