L. do D.
Quem quizesse fazer um catalogo de monstros,
não teria mais que photographar em palavras aquellas
coisas que a noite traz ás almas ∧somnolentas que não conseguem dor-
mir. Essas coisas teem toda a incoherencia do sonho
sem a desculpa incognita de se estar dormindo. Pairam
como morcegos sobre a passividade da alma, ou vampiros
que suguem o sangue da submissão.
São larvas do declive e do desperdicio,
sombras que enchem o valle, vestigios que ficam do
destino. Umas vezes são vermes, nauseantes á propria
alma que os afaga e cria; outras vezes são espectros,
e rondam sinistramente coisa nenhuma; outras vezes a-
inda, emergem, cobras, dos reconcavos absurdos das
emoções perdidas.
Lastro do falso, não servem senão para que
não sirvamos. São duvidas do abysmo, deitadas na alma,
arrastando dobras somnolentas e frias. Duram fumos,
passam rastros, e não ha mais que o haverem sido na
substancia esteril de ter tido consciencia d'elles.
Um ou outro é como uma peça intima de fogo de artifi-
cio: faisca-se um tempo entre sonhos, e o resto é a
inconsciencia da consciencia com que o vimos.
Nastro desatado, a alma não existe em
si mesma. As grandes paisagens são para amanhã, e nós
já vivemos. Falhou a conversa interrompida. Quem diria
que a vida havia de ser assim?
Perco-me se me encontro, duvido se acho,
não tenho se obtive. Como se passeasse, durmo, mas es-
tou disperto. Como se dormisse, accórdo, e não me per-
tenço. A vida, afinal, é, em si mesma, uma grande in-
somnia, e ha um estremunhamento lucido em tudo quanto
fazemos e pensamos.
Seria feliz se pudesse dormir. Esta opinão
é d'este momento, porque não durmo. A noite é um peso
immenso por traz do afogar-me com o cobertor
mudo do que sonho. Tenho uma indigestão na alma.
Sempre, depois de depois, virá o dia, mas
será tarde, como sempre. Tudo dorme e é feliz, menos
eu. Descanso um pouco, sem que ouse que durma. E gran-
des cabeças de monstros sem ser emergem confusas do
fundo de quem sou. São dragões do Oriente do abysmo,
com linguas encarnadas de fóra da logica, com olhos
que fitam sem vida a minha vida morta que os não fita.
A tampa, por amor de Deus, a tampa!
Concluam-me a inconsciencia e vida! Felizmente, pela
janella fria, de portas desdobradas para traz, um fio
triste de luz pallida começa a tirar a sombra do ho-
rizonte. Felizmente, o que vae raiar é o dia. Socégo,
quasi, do cansaço do desasocego. Um gallo canta, ab-
surdo, em plena cidade. O dia livido começa no meu vago
somno. Alguma vez dormirei. Um ruido de rodas faz carro-
ça. Minhas palpebras dormem, mas não eu. Tudo, emfim,
é o Destino.
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4/11/1931.