LdoD da Chuva - Usa (BNP/E3, 2-55r)

Depois que as ultimas chuvas


                                                20/6/1931.

L. do D.

Depois que as ultimas chuvas passaram se desmontoaram para o sul,
e só ficou o vento que as varreu, regressou aos montões da cidade
a alegria do sol certo e appareceu muita roupa branca pendurada
a saltar nas cordas esticadas por paus medios nas janellas altas
dos predios de todas as côres.


Tambem fiquei contente, porque existo. Sahi de ca-
sa para um grande fim, que era,
afinal, chegar a horas ao escripto-
rio. Mas, neste dia, a propria compulsão da vida participava d'a-
quella outra boa compulsão que faz o sol vir nas horas do almanak, con-
forme a latitude e a longitude dos logares da terra. Senti-me fe-
liz por não poder sentir-me infeliz. Desci a rua descansadamente,
cheio de certeza, porque, emfim, o escriptorio conhecido, a gente
conhecida nelle, eram certezas. Não admira que me sentis-
se livre, sem saber de quê. Nos cestos poisados à beira dos pas-
seios da Rua da Prata as bananas de vender, sob o sol, eram de um
amarello grande.

Contento-me, afinal, com muito pouco: o ter cessa-
do a chuva, o haver um sol bom neste Sul feliz, bananas mais ama-
rellas por terem nodoas negras, a gente que as vende porque falla,
os passeios da Rua da Prata, o Tejo ao fundo, azul esverdadeado a
ouro, todo este recanto domestico do systema do Universo.


Virá o dia em que não veja isto mais, em que me
sobreviverão as bananas da orla do passeio, e as vozes das vende-
deiras solertes, e os jornaes do dia que o pequeno estendeu lado
a lado na esquina do outro passeio da rua. Bem sei que as bananas
serão outras, e que as vendedeiras serão outras, e que os jornaes
terão, a quem se baixar curvar para vel-os, uma data que não é a de hoje.
Mas elles, porque não vivem, duram ainda que outros; eu, porque
vivo, passo ainda que o mesmo.

Esta hora poderia eu bem solemniza-la compran-
do bananas, pois me parece que nestas se projectou todo o sol do
dia como um holophote sem machina origem. Mas tenho vergonha dos rituaes,
dos symbolos, de comprar coisas na rua. Podiam não me embrulhar
bem as bananas, não m'as vender como devem ser vendidas por eu as não
saber comprar como devem ser compradas. Podiam extranhar a minha
voz ao perguntar o preço. Mais vale escrever do que ousar viver,
ainda que viver não seja fosse mais que comprar bananas ao sol, emquanto
o sol dura e ha bananas que vender á venda.

Mais tarde, talvez... Sim, mais tarde... Um outro, talvez... Não sei...