Edição do Arquivo LdoD - Usa (Revolução, n.º 74)

Disse Amiel que uma paisagem é um estado da alma


Do Livro do Desasocego
      Composto por Bernardo Soares, ajudante
      de guarda-livros na cidade de Lisboa

Disse Amiel que uma pai-
sagem é um estado da alma,
mas a frase é uma felicidade
frouxa de sonhador debil.
Desde que a paisagem é pai-
sagem, deixa de ser um es-
tado da alma. Objectivar é
crear, e ninguem diz que
um poema feito é um estado
de estar pensando em fazêl-o.
Ver é talvez sonhar, mas,
se lhe chamamos ver em vez
de lhe chamarmos sonhar, é
que distinguimos sonhar de
ver.

De resto, de que servem
estas especulações de psico-
logia verbal? Independente-
mente de mim, cresce herva,
chove na herva que cresce, e
o sol doira a extenção da her-
va que cresceu ou vai crescer;
erguem-se os montes de mui-
to antigamente, e o vento
passa com o mesmo
modo com que Homero, ainda que
não existisse, o ouviu. Mais
certo era dizer que um estado
da alma é uma paisagem;
haveria na frase a vantagem
de não conter a mentira de
uma teoria, mas tamsómente
a verdade de uma metáfora.

Estas palavras casuaes fo-
ram-me dictadas pela grande
extensão da cidade, vista á
luz universal do sol, desde o
alto de São Pedro de Alcân-
tara. Cada vez que assim con-
templo uma extensão larga, e
me abandono do metro e se-
tenta de altura, e sessenta e
um quilos de peso, em que
fisicamente consisto, tenho
um sorriso grandemente me-
tafisico para os que sonham
que o sonho é sonho, e amo
a verdade do exterior abso-
luto com uma virtude nobre
do entendimento.

O Tejo ao fundo é um lago
azul, e os montes da outra
banda são de uma Suissa
achatada. Sái um navio pe-
queno — vapor de carga pre-
to — dos lados do Poço do
Bispo para a barra que não
vejo. Que os Deuses todos
me conservem, até á hora em
que cesse este meu aspecto
de mim, a noção clara e so-
lar da realidade externa, o
instínto da minha inimportân-
cia, o comforto de ser peque-
no e de poder pensar em ser
feliz!

FERNANDO PESSOA