Viver é ser outro


L. do D.                    18/5/1930.

Viver é ser outro. Nem sentir é possivel
se hoje se sente como hontem se sentiu: sentir
hoje o mesmo que hontem não é sentir — é
lembrar hoje o que se sentiu hontem, ser hoje o
cadaver vivo do que hontem foi a vida perdida.

Apagar tudo do quadro de um dia para
outro, ser novo com cada nova madrugada,
numa revirgindade perpetua da emoção —
isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para
ser ou ter o que imperfeitamente somos.

Esta madrugada é a primeira do
mundo. Nunca esta côr rosa amarellecendo
para branco quente pousou assim na
face com que a casaria de oeste encara cheia
de olhos vidrados o silencio que vem na luz
crescente. Nunca houve esta hora, nem
esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que
foi será outra cousa, e o que eu vir será
visto por olhos recompostos, cheios de
uma nova visão.

Altos montes da cidade! Grandes ar-
chitecturas que as encostas
ingremes seguram e engrandecem,
resvalamentos de edificios diversamente
amontoados, que a luz tece de sombras e

queimações — sois hoje, sois eu, porque vos vejo, sois o que
amanhã, e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro
navio e ha saudades desconhecidas na passagem.


Identificação: bn-acpc-e-e3-3-1-88_0065_33_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (27.4cm X 19.4cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 18-05-1930
Nota: LdoD, Texto escrito no verso de uma metade inferior da folha impressa "Sobre um Manifesto de Estudantes".
Fac-símiles: BNP/E3, 3-33r.1