25/4/1930.
L. do D.
Remoinhos, redemoinhos, na futilidade fluida da vida!
Na grande praça ao centro da cidade, ∧a agua sobriamente
multicolor ∧da gente passa, desvia-se, faz pôças, abre-se em
riachos, junta-se em ribeiros. Os meus olhos vêem desatten-
tamente, e construo em mim ∧essa imagem aquea que, melhor que
qualquer outra, e porque pensei que viria chuva, se ajusta
a este incerto movimentos.
Ao escrever esta ultima phrase, que para mim exacta-
mente diz o que define, pensei que seria util pôr no fim
do meu livro, quando o publicar, abaixo das "Errata" umas
"Não-Errata", e dizer: a phrase "a este incerto movimentos",
∧na pagina tal, é assim mesmo, com as vozes ad-
jectivas no singular e o substantivo no plural. Mas que
tem isto com aquillo em
que estava pensando? Nada, e porisso me deixo pensal-o.
Á roda ∧dos ∧meios da praça, como caixas de phosphoros
moveis, grandes e amarellas, em que uma creança espetasse
um phosphoro queimado inclinado, para fazer de ∧mau mastro, os
carros electricos rosnam e tinem; arrancados, assobiam a
ferro alto. Á roda da estatua central as pombas são miga-
lhas pretas que se mexem, como se ∧lhes désse um vento
∧espalhador. Dão passinhos, gordas sobre pés pequenos.
(2)
Vista de perto, toda a gente é ∧monotonamente diversa.
Dizia Vieira que Frei Luiz de Sousa escrevia "o commum com
singularidade". Esta gente é singular com communidade, ás a-
vessas do estylo da Vida do Arcebispo. Tudo isto me faz pe-
na, sendo-me todavia indifferente. Vim parar aqui sem razão,
como ∧tudo na vida.
Do lado do oriente, entrevista, a cidade ergue-se quasi
a prumo falso, assalta estaticamente o Castello. O sol pal-
lido ∧molha de um aureolar vago ∧essa mole ∧subita ∧de ∧casas,
que para aqui o occulta. O céu é de um azul humidamente es-
branquiçado. A chuva de hontem talvez se repita hoje, mas
mais branda. O vento parece leste, talvez por ∧que aqui mesmo, de
repente, cheira vagamente ao maduro e verde do
mercado proximo ∧occulto. Do lado oriental da praça ha
mais forasteiros que do outro. Como descargas
alcatifadas, as portas onduladas descem para cima; não sei
porquê, é assim a phrase que me transmitte aquelle som.
∧É talvez porque fazem mais
esse som ao descer,
porém agora
sobem.
Tudo se
explica.
De repente, estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto
de um telhado espiritual ∧mental. Estou só no mundo. Ver é estar dis-
tante. Ver claro é parar. Analysar é ser extrangeiro. Toda
a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar á minha volta.
Sinto-me tam isolado que sinto ∧roço a distancia entre mim e
∧o meu fato. Sou uma criança, com uma palmatoria mal accesa, que a-
travessa,
de camisa de noite, uma grande casa deserta. Vivem
sombras que me cercam — só sombras, filhas dos moveis hir- ∧das coisas mortas
tos e da luz que me acompanha. Ellas me rondam, ∧aqui ao sol, ∧mas são gente.
∧E são sombras, sombras...