Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(396)

A vida é uma viagem experimental


L. do D.

A vida é uma viagem experimental, feita involuntariamente. É uma viagem do espirito atravez da materia, e, como é o espirito que viaja, é nelle que se vive. Ha, porisso, almas contemplativas que teem vivido mais intensa, mais extensa, mais tumultuariamente do que outras que teem vivido externas. O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Recolhe-se tam cansado de um sonho como de um trabalho visivel. Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.

Quem está ao canto da sala dansa com todos os dansarinos. Vê tudo, e, porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em summula e ultimidade, é uma sensação nossa, tanto vale o contacto com um corpo como a visão d'elle, ou, até, a sua simples recordação. Danso, pois, quando vejo dansar. Digo, como o poeta inglez, narrando que contemplava, deitado na herva ao longe, trez ceifeiros: "Um quarto está ceifando, e esse sou eu".

Vem isto tudo, que vae dito como vae sentido, a proposito do grande cansaço, apparentemente sem causa, que desceu hoje subito sobre mim. Estou não só cansado, mas amargurado, e a amargura é incognita tambem. Estou, de angustiado, à beira de lagrimas - não de lagrimas que se choram, mas que se reprimem, lagrimas de uma doença da alma, que não de uma dôr sensivel.

Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violencias paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago commigo as feridas de todas as batalhas que evitei. Meu corpo muscular está moido do exforço que nem pensei em fazer.

Baço, mudo, nullo... O céu ao alto é de um verão morto, imperfeito. Olho-o como se elle alli não estivesse. Durmo o que penso, estou deitado andando, soffro sem sentir. A minha grande nostalgia é de nada, é nada, como o céu alto que não vejo, e que estou fitando impessoalmente.

23/6/1932.