L. do D.
A vida é uma viagem experimental, feita involunta-
riamente. É uma viagem do espirito atravez da materia, e, como
é o espirito que viaja, é nelle que se vive. Ha, porisso, al-
mas contemplativas que teem vivido mais intensa, mais extensa,
mais tumultuariamente do que outras que teem vivido externas.
O resultado é tudo. O que se sentiu foi o que se viveu. Reco-
lhe-se tam cansado de um sonho como de um trabalho visivel.
Nunca se viveu tanto como quando se pensou muito.
Quem está ao canto da sala dansa com todos os dansa-
rinos. Vê tudo, e, porque vê tudo, vive tudo. Como tudo, em
summula e ultimidade, é uma sensação nossa, tanto vale o con-
tacto com um corpo como a visão d'elle, ou, até, a sua simples
recordação. Danso, pois, quando vejo dansar. Digo, como o poeta
inglez, narrando que contemplava, deitado na herva ao
longe, trez ceifeiros: "Um quarto está ceifando, e esse sou eu".
Vem isto tudo, que vae dito como vae sentido, a propo-
sito do grande cansaço, apparentemente sem causa, que desceu ho-
je subito sobre mim. Estou não só cansado, mas amargurado, e
a amargura é incognita tambem. Estou, de angustiado, à beira
de lagrimas - não de lagrimas que se choram, mas que se reprimem,
lagrimas de uma doença da alma, que não de uma dôr sensivel.
Tanto tenho vivido sem ter vivido! Tanto tenho
pensado sem ter pensado! Pesam sobre mim mundos de violencias
paradas, de aventuras tidas sem movimento. Estou farto do que
nunca tive nem terei, tediento de deuses por existir. Trago com-
migo as feridas de todas as batalhas que evitei. Meu corpo mus-
cular está moido do exforço que nem pensei em fazer.
Baço, mudo, nullo... O céu ao alto é de um verão morto,
imperfeito. Olho-o como se elle alli não estivesse. Durmo o que
∧penso, estou deitado andando, soffro sem sentir. A minha grande
nostalgia é de nada, é nada, como o céu alto que não vejo, e que
estou fitando impessoalmente.
23/6/1932.