Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 3-84)

A arte consiste em fazer os outros sentir


L. do D.

A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós
sentimos, em os libertar d'elles mesmos, propondo-lhes a
nossa personalidade para especial libertação. O que sinto,
na verdadeira substancia com em que o sinto, é absolutamente
incommunicavel; e quanto mais profundamente o sinto, tanto
mais incommunicavel é. Para que eu, pois, possa transmit-
tir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sen-
timentos na linguagem d'elle, isto é, que dizer taes coi-
sas como sendo as que eu sinto, que elle, lendo-as, sinta
exactamente o que eu senti. E como este outrem é, por hy-
pothese de arte, não esta ou aquella pessoa, mas toda a
gente, isto é, aquella pessoa que é commum a todas as pes-
soas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus
sentimentos num sentimento humano typico, ainda que perver-
tendo a verdadeira natureza d'aquillo que senti.

Tudo quanto é abstracto é difficil de
comprehender, porque é difficil de conseguir para elle a
attenção de quem o leia. Darei, porisso, um exemplo sim-
ples, em que as abstracções que formei se concretizarão.
Supponha-se que, por um motivo qualquer, que póde ser o
cansaço de fazer contas ou o tedio de não ter que fazer,
cahe sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angustia de
mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emo-
ção por phrases que de perto a cinjam, quanto mais de
perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos,
portanto, a communico a outros. E, se não ha communical-a
a outros, é mais justo e mais facil sentil-a sem a escrever.

Supponha-se, porém, que desejo communical-a a outros,
isto é, fazer d'ella arte, pois a arte é a communicação
aos outros da nossa identidade intima com elles; sem o
que nem ha communicação nem necessidade de a fazer. Procuro
qual será a emoção humana vulgar geral que tenha o tom, o typo,
a fórma d'esta emoção em que estou agora, pelas razões in-
humanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta abor-
recido. E verifico que o typo de emoção vulgar que produz,
na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infancia
perdida.

Tenho a chave para a porta do meu thema. Escrevo e
chóro a minha infancia perdida; demoro-me commovidamente
sobre os pormenores de pessoas e mobilia da velha casa na
provincia; evoco a felicidade de não ter direitos nem de-
veres, de ser livre por não saber pensar nem sentir — e
esta evocação, se fôr bem feita como prosa e visões, vae
dispertar no meu leitor exactamente a emoção que eu senti, e
que nada tinha com infancia.

Menti? Não, comprehendi. Que a mentira, salvo a que


é infantil e espontanea, e nasce da vontade de estar a
sonhar, é tamsòmente a noção da existencia real dos ou-
tros e da necessidade de conformar a essa existencia a
nossa, que se não póde conformar a ella. A mentira é
simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos
servimos de palavras, que são sons articulados de uma
maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais intimos e subtis
movimentos da emoção e do pensamen-
to, que as palavras forçosamente não poderão nunca tra-
duzir, assim nos servimos da mentira e da fic-
ção para nos entendermos uns aos outros, o que com a ver-
dade, propria e intransmissivel, se nunca poderia fazer.

A arte mente porque é social. E ha só duas grandes
fórmas de arte — uma que se dirige à nossa alma profunda,
a outra que se dirige a nossa alma attenta. A primeira
é a poesia, o romance a segunda. A primeira começa a
mentir na propria estructura; a segunda começa a mentir
na propria intenção. Uma pretende dar-nos a ver-
dade por meio de linhas variadamente regra-
das, que mentem à inherencia da falla; outra pretende
dar-nos a verdade por uma realidade que todos sabemos bem que nunca
houve.

Fingir é amar. Nem vejo nunca um lindo sorriso ou
um olhar significativo que não medite, de repente, e
seja de quem fôr o olhar ou o sorriso, qual é, no fundo
da alma em cujo rosto se sorri ou olha, o
estadista que nos quer comprar ou a prostituta que quer
que a compremos. Mas o estadista que nos compra amou,
ao menos, o comprar-nos; e a prostituta, a quem compremos,
amou ao menos o comprar-mol-a. Não fugimos, por mais
que queiramos, á fraternidade universal. Amamo-nos todos
uns aos outros, e a mentira é o beijo que trocamos.

                                        1/12/1931.