Muitos teem definido o homem


              DO "LIVRO DO DESASOCEGO"

      COMPOSTO POR BERNARDO SOARES, AJUDANTE DE
          GUARDA-LIVROS NA CIDADE DE LISBOA


Muitos teem definido o homem, e em geral o teem
definido em contraste com os animaes. Por isso, nas de-
finições do homem, é frequente o uso da phrase "o homem
é um animal..." e um adjectivo, ou "o homem é um animal
que..." e diz-se o quê. "O homem é um animal doente",
disse Rousseau, e em parte é verdade. "O homem é um ani-
mal racional", diz a Egreja, e em parte é verdade. "O
homem é um animal que usa de ferramenta", diz Carlyle,
e em parte é verdade. Mas estas definições, e outras
como ellas, são sempre imperfeitas e lateraes. E a razão
é muito simples: não é fácil distinguir o homem dos a-
nimaes, não ha critério seguro para distinguir o homem
dos animaes. As vidas humanas decorrem na mesma intima
inconsciência que as vidas dos animaes. As mesmas leis
profundas, que regem de fóra os instinctos dos animaes,
regem, tambem de fóra, a intelligencia do homem, que
parece não ser mais que um instincto em formação, tam
inconsciente como todo instincto, menos perfeito porque
ainda não formado.

"Tudo vem da sem-razão", diz-se na Anthologia Gre-
ga. E, na verdade, tudo vem da sem-razão. Fóra da mathe-
matica, que não tem que vêr senão com numeros mortos e
formulas vazias, e porisso póde ser perfeitamente logica,
a sciencia não é senão um jogo de creanças no crepusculo,
um querer apanhar sombras de aves e parar sombras de her-
vas ao vento.

E é curioso e estranho que, não sendo facil encon-
trar palavras com que verdadeiramente se defina o homem
como distincto dos animaes, é todavia facil encontrar ma-
neira de differençar o homem superior do homem vulgar.
Nunca me esqueceu aquella phrase de Haeckel, o biologista,
que li na infancia da intelligencia, quando se lêem as
divulgações scientificas e as razões contra a religião.
A phrase é esta, ou quasi esta: que muito mais longe está
o homem superior ( um Kant ou um Goethe, creio que diz )
do homem vulgar que o homem vulgar do macaco. Nunca es-
queci a phrase porque ella é verdadeira. Entre mim, que
pouco sou na ordem dos que pensam, e um camponez de Lou-
res vae, sem duvida, maior distancia que entre esse cam-
ponez e, já não digo um macaco, mas um gato ou um cão.
Nenhum de nós, desde o gato até mim, conduz de facto a
vida que lhe é imposta, ou o destino que lhe é dado; todos
somos egualmente derivados de não sei quê, sombras de
gestos feitos por outrem, effeitos incarnados, consequen-


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cias que sentem. Mas entre mim e o camponez ha uma differen-
ça de qualidade, proveniente da existencia em mim do pensamen-
to abstracto e da emoção desinteressada; e entre elle e o gato
não ha, no espirito, mais que uma differença de grau.

O homem superior differe do homem inferior, e dos ani-
maes irmãos d'este, pela simples qualidade da ironia. A iro-
nia é o primeiro indicio de que a consciência se tornou con-
sciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio mar-
cado por Socrates, quando disse "sei só que nada sei", e o
estádio marcado por Sanches, quando disse "nem sei se nada
sei". O primeiro passo chega àquelle ponto em que duvidamos
de nós dogmaticamente, e todo homem superior o dá e attinge.
O segundo passo chega àquelle ponto em que duvidamos
de nós e da nossa duvida, e poucos homens o teem attingido
na curta extensão já tam longa do tempo que, humanidade, te-
mos visto o sol e a noite sobre a vária superficie da terra.

Conhecer-se é errar, e o oraculo que disse "Conhece-
te" propoz uma tarefa maior que as de Hercules e um enigma
mais negro que o da Sphynge. Desconhecer-se conscientemente,
eis o caminho. E desconhecer-se conscientemente é o emprego
activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais pro-
pria do homem que é deveras grande, que a analyse paciente
e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registro con-
sciente da inconsciencia das nossas consciencias, a metaphy-
sica das sombras autonomas, a poesia do crepusculo da desil-
lusão.

Mas sempre qualquer coisa nos illude, sempre qualquer
analyse se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, es-
tá além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vi-
da, quando ella cansa, e de que o conhecimento e meditação
d'ella, que nunca deixam de cansar.

Ergo-me da cadeira de onde, fincado distrahidamente con-
tra a mesa, me entretive a narrar para mim estas impressões
irregulares. Ergo-me, ergo o corpo nelle mesmo, e vou até á
janella, alta acima dos telhados, de onde posso vêr a cidade
ir a dormir num começo lento de silencio. A lua, grande e
de um branco branco, elucida tristemente as differenças so-
calcadas da casaria. E o luar parece illuminar algidamente
todo o mysterio do mundo. Parece mostrar tudo, e tudo é som-
bras com mixturas de luz má, intervallos falsos, desnivelamen-
tos absurdos, incoherencias do visivel. Não ha brisa, e pa-
rece que o mysterio é maior. Tenho nauseas no pensamento ab-
stracto. Nunca escreverei uma pagina que me revele ou que re-
vele alguma cousa. Uma nuvem muito leve paira vaga acima da
lua, como um esconderijo. Ignoro, como estes telhados. Falhei,
como a natureza inteira.

                                        FERNANDO PESSOA


Identificação: bn-acpc-e-e3-3-1-88_0173_87_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-3-1-88_0175_88_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (28.1cm X 22.6cm, 28.1cm X 22.6cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (black-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta preta.
Data: 03-03-1931
Nota: LdoD, Texto escrito no recto de duas folhas inteiras. Publicado na edição de Jacinto do Prado Coelho, sem as indicações iniciais, com a data de 3-3-1931 e com a indicação “Publ. in Presença, vol.2, nº 34, Nov. 1931-Fev. 1932, p.8". Fragmento assinado por Fernando Pessoa e atribuído a Bernardo Soares.
Fac-símiles: BNP/E3, 3-87-88.1 , BNP/E3, 3-87-88.2