L. do D.
 ∧Sim, É o poente.  ∧Chego á foz da Rua da Alfandega, vagaroso
 e disperso, e, ao  ∧clarear-me  ∧o Terreiro do Paço, vejo  nitido o sem
 sol do céu occidental. Esse céu é de um azul esverdeado para
 cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sobre os montes da
 outra margem, se abaixa ∧agacha, amontoada, uma nevoa acastanhada de
 côr de rosa morto. Ha uma grande paz que não tenho dispersa
 friamente no ar outomnal abstracto. Soffro de a não ter o pra-
zer 
                        vago de suppor que ella existe. Mas, na realidade, não ha
 paz nem falta de paz: céu apenas, céu de todas as cores que
 desmaiam, azul branco, verde azulado ainda, cinzento pallido
 entre verde e azul, vagos tons remotos de cores de nuvens que
 o não são, amarelladamente  ∧escurecidas de encarnado findo...
 E tudo isto é uma visão que se extingue no mesmo momento em
 que é tida, um intervallo entre nada e nada, alado, posto alto,
 em tonalidades de céu e magua, prolixo e indefinido. 
 Sinto e esqueço. Uma saudade, que é a de toda a
 gente (por tudo), invade-me como um opio do ar frio. Ha em mim
 um extase de ver, intimo e postiço. 
 Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol
 cada vez mais cessa ∧se acaba, a luz extingue-se em  branco 
  livido que se azula de esverdeado frio. Ha no ar
 um torpor do que se não consegue nunca. Cala  ∧alto a paisagem
 do céu. 
 Nesta hora, em que sinto até transbordar, quizera
 ter a malicia inteira de dizer, o capricho livre de um estylo 
 por destino. Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se,
 e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é
 mais que o reflexo d'esse céu nullo num lago em mim — lago  ∧recluso entre rochedos  ∧hirtos, calado, olhar de morto, em que a
 altura se contempla, esquecida. 
 Tantas vezes, tantas, como agora,  ∧me  tem pesado
 sentir 
                        que sinto — sentir como angustia só por ser sentir,
 a inquietação 
                        de estar aqui, a saudade de outra coisa que se
 não conheceu, o poente de todas as emoções, amarellecer ∧-me es-
batido 
                        para  ∧tristeza cinzenta na minha  consciencia ∧externa de
 mim. 
 Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que
 quero, nem a vida: é aquella outra cousa que brilha no fundo
 da ancia como um diamante possivel numa cova a que se não póde
 descer. É todo o peso e  a magua (nausea) d'este universo real
 e impossivel, d'este céu estandarte de um exercito  ∧incognito,
 ∧d' estes tons que vão empallidecendo pelo ar  ∧ficticio, de onde
 o crescente imaginario da lua emerge numa brancura electrica
 É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cada-
ver vacuo do céu ∧ nada(?) alto e da alma fechada. Carcere infinito —
 porque és infinito, não se póde fugir de ti! 
                                     16 e 17/10/1931.