Edição do Arquivo LdoD - Usa (Descobrimento, nº 3)

Assim como, quer o saibamos quer não


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Assim como, quer o saibamos quer não, temos todos uma
metafísica, assim também, quer o queiramos quer não, temos
todos uma moral. Tenho uma moral muito simples — não fa-
zer a ninguém nem mal nem bem. Não fazer a ninguém mal,
porque não só reconheço nos outros o mesmo direito que julgo
que me cabe, de que não me incomodem, mas acho que bastam
os males naturais para mal que tenha que haver no mundo. Vi-
vemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um
porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; deve-
mos ter, uns para os outros, uma amabilidade de viagem. Não
fazer bem, porque não sei o que é o bem, nem se o faço quando
julgo que o faço. Sei eu que males produzo se dou esmola? Sei
eu que males produzo se educo ou instruo? Na dúvida, abste-
nho-me. E acho, ainda, que auxiliar ou esclarecer é, em certo
modo, fazer o mal de intervir na vida alheia. A bondade é um
capricho temperamental: não temos o direito de fazer os outros
víctimas de nossos caprichos, ainda que de humanidade ou de
ternura. Os benefícios são coisas que se infligem; por isso os
abomino friamente.

Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo
façam. Se adoeço, o que mais me pesa é que obrigo alguém a
tratar-me, coisa que me repugnaria de fazer a outrem. Nunca
visitei um amigo doente. Sempre que, tendo eu adoecido, me


visitaram, sofri cada visita como um incomodo, um insulto, uma
violação injustificável da minha intimidade decisiva. Não gosto
que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê
também — aos mesmos ou a outros, seja a quem fôr.

Sou altamente sociável de um modo altamente negativo. Sou
a inofensividade incarnada. Mas não sou mais do que isso, não
quero ser mais do que isso, não posso ser mais do que isso.
Tenho para com tudo que existe uma ternura visual, um cari-
nho da inteligência — nada no coração. Não tenho fé em nada,
esperança de nada, caridade para nada. Abomino com nausea e
pasmo os sinceros de tôdas as sinceridades e os místicos de to-
dos os misticismos, ou, antes e melhor, as sinceridades de todos
os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa nausea
é quási física quando êsses misticismos são activos, quando pre-
tendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade
alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo.

Considero-me feliz por não ter já parentes. Não me vejo
assim na obrigação, que inevitavelmente me pesaria, de ter que
amar alguém. Não tenho saüdades senão literàriamente. Lem-
bro a minha infância com lágrimas, mas são lágrimas rítmicas,
onde já se prepara a prosa. Lembro-a como uma coisa externa
e através de coisas externas; lembro só as coisas externas. Não
é o sossêgo dos serões de província que me enternece da in-
fância que vivi nêles: é a disposição da mesa para o chá, são
os vultos dos móveis em tôrno da casa, são as caras e os gestos
físicos das pessoas. É de quadros que tenho saüdades. Por
isso tanto me enternece a minha infância como a de outrem:
são ambas, no passado que não sei o que é, fenómenos pura-
mente visuais, que sinto com a atenção literária. Enterneço-me,
sim, mas não é porque lembro, mas porque vejo.

Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensa-
ções minhas — estados da visualidade consciente, impressões da
audição disperta, perfumes que são uma maneira de a humildade
do mundo externo falar comigo, dizer-me coisas do passado
(tão fácil de lembrar pelos cheiros) — isto é, de me darem mais
realidade, mais emoção, que o simples pão a cozer lá dentro na
padaria funda, como naquela tarde longínqua em que vinha do
entêrro do meu tio que me amara tanto e havia em mim vaga-
mente a ternura de um alívio, não sei bem de quê.

É esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu. Tran-
seunte de tudo — até de minha própria alma —, não pertenço a
nada, não desejo nada, não sou nada — centro abstracto de sen-
sações impessoais, espelho caído sentiente virado para a varie-
dade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem
me importa.