Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-33)

Tudo é absurdo


L. do D.

Tudo é absurdo. Este empenha a vida em
ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos a quem o deixe
nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendencia
d'esse dinheiro. Aquelle empenha o esforço em
ganhar fama, para depois de morto, e não crê naquella
sobrevivencia que lhe dê o conhecimento da fama. Esse ou-
tro gasta-se na procura de coisas de que realmente não gos-
ta. Mais adeante, ha um que


Um lê para saber, inutilmente. Outro gosa para viver,
inutilmente.


Vou num carro electrico, e estou reparando lentamente,
conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas
que vão adeante de mim. Para mim os pormenores são coisas,
vozes, lettras phrases. Neste vestido da rapariga que vae em minha
frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe,
o trabalho com que o fizeram — pois que o vejo vestido e
não estofo — e o bordado leve que orla a parte que contorna
o pescoço separa-se-me em retroz de seda, com que se o bor-
dou, e o trabalho que houve de o bordar. E immediatamente,
como num livro primario de economia politica, desdobram-se
deante de mim as fabricas e os
trabalhos — a fabrica onde se fez o tecido; a fabrica onde
se fez o retroz, de um tom mais escuro, com que se orla de
coisinhas retorcidas o seu logar junto do pescoço; e vejo
as secções das fabricas, as machinas, os operarios,
as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos
escriptorios, vejo os gerentes procurar estar socegados,
sigo, nos livros, a contabilidade contabilização de tudo; mas não é só isto: vejo, para além,
as vidas domesticas dos que vivem a sua vida social nessas
fabricas e nesses escriptorios... Todo o mundo se me des-
enrola aos olhos só porque tenho deante de mim, abaixo de
um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara,
um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde cla-
ro de vestido.

Toda a vida social jaz a meus olhos

Para alem d'isto presinto os amores, as secrecias,
a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher
que está deante de mim no electrico, use, em torno do seu
pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retroz de seda
verde escura fazendo inutilidades pela orla de uma fazenda
verde menos escura.


Entonteço. Os bancos do electrico, de um entre- tecido
de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes,
multiplicam-se-me em industrias, operarios, casas de ope-
rarios, vidas, realidades, tudo.


Saio do carro exausto e somnambulo. Vivi a vida
inteira.