Tudo é absurdo


L. do D.

Tudo é absurdo. Este empenha a vida em ganhar dinheiro que guarda, e nem tem filhos a quem o deixe nem esperança que um céu lhe reserve uma transcendencia d'esse dinheiro. Aquelle empenha o esforço em ganhar fama, para depois de morto, e não crê naquella sobrevivencia que lhe dê o conhecimento da fama. Esse outro gasta-se na procura de coisas de que realmente não gosta. Mais adeante, ha um que (...)

Um lê para saber, inutilmente. Outro gosa para viver, inutilmente.

Vou num carro electrico, e estou reparando lentamente, conforme é meu costume, em todos os pormenores das pessoas que vão adeante de mim. Para mim os pormenores são coisas, vozes, lettras. Neste vestido da rapariga que vae em minha frente decomponho o vestido em o estofo de que se compõe, o trabalho com que o fizeram — pois que o vejo vestido e não estofo — e o bordado leve que orla a parte que contorna o pescoço separa-se-me em retroz de seda, com que se o bordou, e o trabalho que houve de o bordar. E immediatamente, como num livro primario de economia politica, desdobram-se deante de mim as fabricas e os trabalhos — a fabrica onde se fez o tecido; a fabrica onde se fez o retroz, de um tom mais escuro, com que se orla de coisinhas retorcidas o seu logar junto do pescoço; e vejo as secções das fabricas, as machinas, os operarios, as costureiras, meus olhos virados para dentro penetram nos escriptorios, vejo os gerentes procurar estar socegados, sigo, nos livros, a contabilidade de tudo; mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domesticas dos que vivem a sua vida social nessas fabricas e nesses escriptorios... Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho deante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde escuro sobre um verde claro de vestido.

Toda a vida social jaz a meus olhos.

Para alem d'isto pressinto os amores, as secrecias [sic], a alma, de todos quantos trabalharam para que esta mulher que está deante de mim no electrico, use, em torno do seu pescoço mortal, a banalidade sinuosa de um retroz de seda verde escura fazendo inutilidades pela orla de uma fazenda verde menos escura.

Entonteço. Os bancos do electrico, de um entre-tecido de palha forte e pequena, levam-me a regiões distantes, multiplicam-se-me em industrias, operarios, casas de operarios, vidas, realidades, tudo.

Saio do carro exausto e somnambulo. Vivi a vida inteira.


Título: Tudo é absurdo
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 163
Página: 183 - 185
Nota: [4-33, dact.];