Text Mining - Usa Jacinto do Prado Coelho(389)

Ha uma erudição do conhecimento


L. do D.

Ha uma erudição do conhecimento, que é propriamente o que se chama erudição, e ha uma erudição do entendimento, que é o que se chama cultura. Mas ha tambem uma erudição da sensibilidade.

A erudição da sensibilidade nada tem que ver com a experiencia da vida. A experiencia da vida nada ensina, como a historia nada informa. A verdadeira experiencia consiste em restringir o contacto com a realidade e aumentar a analyse d'esse contacto. Assim a sensibilidade se alarga e aprofunda, porque em nós está tudo; basta que o procuremos e o saibamos procurar.

Que é viajar, e para que serve viajar? Qualquer poente é o poente; não é mister ir vel-o a Constantinopla. A sensação de libertação, que nasce das viagens? Posso tel-a sahindo de Lisboa até Bemfica, e tel-a mais intensamente, do que quem vá de Lisboa á China, porque se a libertação não está em mim, não está, para mim, em parte alguma. "Qualquer estrada" disse Carlyle, "até esta estrada de Entepfuhl, te leva até ao fim do mundo". Mas a estrada de Entepfuhl, se fôr seguida toda, e até ao fim, volta a Entepfuhl; de modo que o Entepfuhl, onde já estavamos, é aquelle mesmo fim do mundo que iamos a buscar.

Condillac começa o seu livro celebre, "Por mais alto que subamos e mais baixo que desçamos, nunca sahimos das nossas sensações". Nunca desembarcamos de nós. Nunca chegamos a outrem, senão outrando-nos pela imaginação sensível de nós mesmos. As verdadeiras paisagens são as que nós mesmos creamos, porque assim, sendo deuses d'ellas, as vemos como ellas verdadeiramente são, que é como foram creadas. Não é nenhuma das septe partidas do mundo aquella que me interessa e posso verdadeiramente vêr; a oitava partida é a que percorro e é minha.

Quem cruzou todos os mares cruzou sómente a monotonia de si mesmo. Já cruzei mais mares do que todos. Já vi mais montanhas que as que ha na terra. Passei já por cidades mais que existentes, e os grandes rios de nenhuns mundos fluiram, absolutos, sob os meus olhos contemplativos. Se viajasse, encontraria a copia debil do que já vira sem viajar.

Nos paises que os outros visitam, visitam-nos anonymos e peregrinos. Nos paizes que tenho visitado, tenho sido, não só o prazer escondido do viajante incognito, mas a magestade do Rei que alli reina, e o povo cujo uso alli habita, e a historia inteira d'aquella nação e das outras. As mesmas paisagens, as mesmas casas eu as vi porque as fui, feitas em Deus com a substancia da minha imaginação.