Dizem que o tedio é uma doença de inertes


L. do D.

18-9-1933

Dizem que o tedio é uma doença de inertes, ou que ataca só os que nada teem que fazer. Essa molestia da alma é porém mais subtil: ataca os que teem disposição para ella, e poupa menos os que trabalham, ou fingem que trabalham (o que para o caso é o mesmo) que os inertes deveras.

Nada ha peor que o contraste entre o esplendor natural da vida interna, com as suas Indias naturaes e os seus paizes incognitos, e a sordidez, ainda que em verdade não seja sordida, de quotidianidade da vida. O tedio peza mais quando não tem a desculpa da inercia. O tedio dos grandes exforçados é o peor de todos.

Não é o tedio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada. E, sendo assim, quanto mais ha que fazer, mais tedio há que sentir.

Quantas vezes ergo do livro onde estou escrevendo e que trabalho a cabeça vazia de todo o mundo! Mais me valera estar inerte, sem fazer nada, sem ter que fazer nada, porque esse tedio, ainda que real, ao menos o gosaria. No meu tedio presente não ha repouso, nem nobreza, nem bem-estar em que haja mal-estar: ha um apagamento enorme de todos os gestos feitos, não um cansaço virtual dos gestos por não fazer.


Título: Dizem que o tedio é uma doença de inertes
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 175
Página: 198 - 199
Data: 18-09-1933
Nota: [4-53, dact.];