Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 4-50r-51r)

Ninguem ainda definiu


L. do D.

Ninguem ainda definiu, com linguagem com que
comprehendesse quem o não tivesse experimentado, o que é
o tedio. O a que uns chamam tedio, não é mais que aborre-
cimento; o que a outros o chamam, não é senão mal-estar;
ha outros, ainda, que chamam tedio ao cansaço. Mas o te-
dio, embora participe do cansaço, e do mal-estar, e do a-
borrecimento, participa d'elles como a agua participa do
hydrogenio e oxygenio, de que se compõe. Inclue-os sem que
a elles se assemelhar assemelhe.

Se uns dão assim ao tedio um sentido restricto
e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo
o transcende — como quando se chama tedio ao desgosto inti-
mo e espiritual da variedade e da incerteza do
mundo. O que faz abrir a bocca, que é o aborrecimento; o
que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não
se poder mexer, que é o cansaço — nenhuma d'estas coisas é
o tedio; mas também o não é o sentimento profundo da va-
cuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se li-
berta, a ansia desilludida se ergue, e se forma na alma
a semente, da qual nasce o mystico ou o santo.

O tedio é, sim, o aborrecimento do mundo, o
mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vi-
vido; o tedio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade
prolixa das coisas. Mas o tedio é, mais do que isto, o
aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não;
o mal-estar de ter que viver, ainda que
outro, ainda que de outro modo,
ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de hontem e de
hoje, mas de amanhã também, e da eternidade, se a houver,
e do nada, se é elle que é a eternidade. Nem é só a vacui-
dade das coisas e dos seres que doe na alma quando ella
está em tedio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer,
que não as coisas e os seres, a vacuidade da propria alma
que sente o vacuo, que se sente vacuo, e que nelle de si se
enoja e se repudia.


O tedio é a sensação physica do chaos, e de que o
chaos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sen-
tem-se presos numa cella estreita. O desgostoso da estreiteza
da vida sente-se algemado numa cella grande. Mas o que tem
tedio sente-se preso em liberdade fruste numa cella infinita.
Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem
desabar os muros da cella, e soterral-o. Ao que se desgosta
da pequenez do mundo, podem cahir as algemas, e elle fugir;
ou doer doerem de as não poder tirar, e elle, com sentir a dor,
reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cella infinita não nos
podem soterrar, porque não existem; nem nos podem se-
quer fazer viver pela dor as algemas que ninguem nos ninguem poz.

E é isto que eu sinto ante a belleza placida d'esta
tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro,
onde coisas vagas, roseas, como sombras de nuvens, são uma
pennugem impalpavel de uma vida alada e longinqua. Baixo os
olhos sobre o rio, onde a agua, não mais que levemente tre-
mula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais pro-
fundo. Ergo de novo os olhos ao céu, e ha já, entre o que de
vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisivel,
um tom algendo de branco baço, como se alguma coisa tambem
das coisas, onde são mais altas e frustes, tivesse um tedio
material proprio, uma impossibilidade de ser o que é,
um corpo imponderavel de angustia e de desolação.

Mas quê? Que ha no ar alto mais que o ar alto, que
não é nada? que ha no céu mais que uma côr que não é
d'elle? que ha nesses farrapos de menos que nuvens, de que
duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente in-
cidentes de um sol já submisso? Que ha em tudo isto senão
eu? Ah, mas o tedio é isso, é só isso. É que em tudo isto —
céu, terra, mundo, — o que ha em tudo isto não é senão eu!

                                    28/9/1932.