Trab. - Usa Jacinto do Prado Coelho(479)

Muitos teem definido o homem


3-3-1931

Muitos teem definido o homem, e em geral o teem definido em contraste com os animaes. Por isso, nas definições do homem, é frequente o uso da phrase "o homem é um animal..." e um adjectivo, ou "o homem é um animal que..." e diz-se o quê. "O homem é um animal doente", disse Rousseau, e em parte é verdade. "O homem é um animal racional", diz a Egreja, e em parte é verdade. "O homem é um animal que usa de ferramenta", diz Carlyle, e em parte é verdade. Mas estas definições, e outras como ellas, são sempre imperfeitas e lateraes. E a razão é muito simples: não é fácil distinguir o homem dos animais, não ha critério seguro para distinguir o homem dos animaes. As vidas humanas decorrem na mesma intima inconsciência que as vidas dos animaes. As mesmas leis profundas, que regem de fóra os instinctos dos animaes, regem, tambem de fóra, a intelligencia do homem, que parece não ser mais que um instincto em formação, tam inconsciente como todo instincto, menos perfeito porque ainda não formado.

"Tudo vem da sem-razão", diz-se na Anthologia Grega. E, na verdade, tudo vem da sem-razão. Fóra da mathematica, que não tem que ver senão com numeros mortos e formulas vazias, e porisso pode ser perfeitamente logica, a sciencia não é senão um jogo de creanças no crepusculo, um querer apanhar sombras de aves e parar sombras de hervas ao vento.

E é curioso e estranho que, não sendo facil encontrar palavras com que verdadeiramente se defina o homem como distincto dos animaes, é todavia facil encontrar maneira de differençar o homem superior do homem vulgar.

Nunca me esqueceu aquella phrase de Haeckel, o biologista, que li na infancia da intelligencia, quando se lêem as divulgações scientificas e as razões contra a religião. A phrase é esta, ou quási esta: que muito mais longe está o homem superior (um Kant ou um Goethe, creio que diz) do homem vulgar que o homem vulgar do macaco. Nunca esqueci a phrase porque ella é verdadeira. Entre mim, que pouco sou na ordem dos que pensam, e um camponez de Loures vae, sem duvida, maior distancia que entre esse camponez e, já não digo um macaco, mas um gato ou um cão. Nenhum de nós, desde o gato até mim, conduz de facto a vida que lhe é imposta, ou o destino que lhe é dado; todos somos egualmente derivados de não sei quê, sombras de gestos feitos por outrem, effeitos encarnados, consequencias que sentem. Mas entre mim e o camponez ha uma differença de qualidade, provenientes da existencia em mim do pensamento abstracto e da emoção desinteressada; e entre elle e o gato não ha, no espirito, mais que uma differença de grau.

O homem superior differe do homem inferior, e dos animaes irmãos d'este, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indicio de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Socrates, quando disse "sei só que nada sei", e o estádio marcado por Sanches, quando disse "nem sei se nada sei". O primeiro passo chega àquelle ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo homem superior o dá e attinge. O segundo passo chega àquelle ponto em que duvidamos de nós e da nossa duvida, e poucos homens o teem attingido na curta extensão já tam longa do tempo que, humanidade, temos visto o sol e a noite sobre a vária superficie da terra.

Conhecer-se é errar, e o oraculo que disse "Conhece-te" propoz uma tarefa maior que as de Hercules e um enigma mais negro que o da Sphynge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a analyse paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registro consciente da inconsciencia das nossas consciencias, a metaphysica das sombras autonomas, a poesia do crepusculo da desillusão.

Mas sempre qualquer coisa nos illude, sempre qualquer analyse se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais que a vida, quando ella cansa, e de que o conhecimento e meditação d'ella, que nunca deixam de cansar.

Ergo-me da cadeira de onde, fincado distrahidamente contra a mesa, me entretive a narrar para mim estas impressões irregulares. Ergo-me, ergo o corpo nelle mesmo, e vou até á janella, alta acima dos telhados, de onde posso ver a cidade ir a dormir num começo lento de silêncio. A lua, grande e de um branco branco, elucida tristemente as differenças socalcadas da casaria. E o luar parece illuminar algidamente todo o mysterio do mundo. Parece mostrar tudo, e tudo é sombras com mixturas de luz má, intervallos falsos, desniveladamente absurdos, incoherencias do visivel. Não ha brisa, e parece que o mysterio é maior. Tenho nauseas no pensamento abstracto. Nunca escreverei uma pagina que me revele ou que revele alguma coisa. Uma nuvem muito leve paira vaga acima da lua, como um esconderijo. Ignoro, como estes telhados. Falhei, como a natureza inteira.