UMA CARTA | Eu não saberia nunca como ajeitar a minha alma


Eu não saberia nunca como ajeitar a minha alma a levar o meu corpo a possuir o seu. Dentro de mim mesmo, ao pensar nisso tropeço em obstáculos que não vejo, enredo-me em teias que não sei o que são. Que muito mais me não aconteceria se eu quisesse possuí-la realmente?

Que eu — repito-lho — era incapaz de o tentar fazer. Nem sequer me ajeito a sonhar-me fazendo-o.

São estas, minha Senhora, as palavras que tenho a escrever à margem da significação do seu olhar involuntariamente interrogativo. É neste livro que primeiro lerá esta carta para si. Se não souber que é para si, resignar-me-ei a que assim seja. Escrevo mais para me entreter do que para lhe dizer qualquer coisa. Só as cartas comerciais são dirigidas. Todas as outras devem, pelo menos para o homem superior, ser apenas dele para si próprio.

Nada mais tenho a dizer-lhe. Creia que a admiro tanto quanto posso. Ser-me-ia agradável que pensasse em mim às vezes.


Título: UMA CARTA | Eu não saberia nunca como ajeitar a minha alma
Heterónimo: Vicente Guedes
Número: 150
Página: 151
Nota: [5-9, ms.];
Nota: Na edição de Teresa Sobral Cunha, este texto integra a sequência "UMA CARTA" (2008: 150-151).