29/3/1930.
L. do D.
(trecho inicial).
Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam
perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maio-
res a haviam tido — sem saber porquê. E então, porque o
espirito humano tende naturalmente para criticar porque
sente, e não porque pensa, a maioria d'esses jovens esco-
lheu a Humanidade para succedaneo de Deus.
Pertenço, porém, aquella especie de homens que estão sem-
pre na margem d'aquillo a que pertencem, nem veem só a
multidão de que são, senão tambem os grandes espa-
ços que ha ao lado. Porisso nem abandonei Deus tam ampla-
mente como elles,
nem acceitei nunca a Humanidade. Consi-
derei que Deus, sendo improvavel,
poderia ser; ∧/podendo
pois dever
ser adora-
do; mas que a
Humanidade, sendo uma mera idéa biologica,
e não
significando mais que a especie animal
Humana,
não era mais digna de adoração do que qualquer ou-
tra especie animal. Este culto da Huma-
nidade, com seus ritos de Liberdade e Egualdade,
pareceu-
me sempre uma reviviscencia dos cultos antigos, em que
animaes eram ∧como deuses, ∧ou os deuses tinham cabeças de ani-
maes.
Assim, não sabendo crer em Deus, e não podendo crer
∧numa somma ∧de animaes ,
fiquei, como
outros da orla das gentes, naquella distancia de tudo a
que commummente se chama a Decadencia.
A Decadencia é a
perda total da inconsciencia;
porque a inconsci-
encia é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pen-
sar, pararia.
A quem, como eu, assim, vivendo não sabe ter vida,
que resta senão, como a meus poucos pares, a renun-
cia por modo e a contemplação por destino. (? ) Não sa-
bendo o que é a vida religiosa, nem podendo sabel-o,
por-
que se não tem fé com a razão; não podendo ter fé na ∧abstracção
∧do homem,
nem sabendo mesmo que fazer d'ella peran-
te nós, ficava-nos, como motivo de ter alma, a contempla-
ção esthetica da vida. E, assim, alheios á solemnidade
de todos os mundos, indifferentes ao ∧divino e desprezadores
do humano, entregamo-nos futilmente á sensação
sem proposito,
cultivada num epicurismo subtilizado, co-
mo convém aos nossos nervos cerebraes.
Retendo, da sciencia, sómente aquelle seu preceito
central, de que tudo é sujeito a leis fataes,
contra as
quaes se não reage independentemente, por que reagir é
ellas terem feito que reagissemos;
e verificando como es-
se preceito se ajusta ao outro, mais antigo, da ∧divina fatali-
dade das coisas, abdicamos do exforço como os debeis do
entretimento dos athletas,
e curvamo-nos sobre o livro
das sensações com um grande escrupulo de erudição sentida.
Não tomando nada a serio,
nem considerando que nos
fôsse dada, por certa, outra realidade que não as nossas
sensações, nellas nos abrigamos, e a ellas exploramos
como ∧a grandes paizes desconhecidos. E, se nos empregamos
assiduamente, não só na contemplação esthetica, mas tambem
na expressão dos seus modos e resultados, é que a prosa ou
o verso que escrevemos, destituidos de vontade de querer
∧convencer o alheio entendimento ou mover a alheia von-
tade, é apenas como o fallar alto de quem lê, feito para
dar plena objectividade ao prazer subjectivo da leitura.
Sabemos bem que toda a obra tem que ser imperfeita,
e que a menos segura das nossas contemplações estheti-
cas será a de aquillo que escrevemos. Mas imperfeito é
tudo, nem ha poente tam bello que o não pudesse ser mais,
ou brisa leve que nos dê somno que não pudesse
dar-nos um somno mais calmo ainda. E assim, contemplado-
res eguaes das montanhas e das estatuas, gosando os dias
como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o conver-
ter na nossa intima substancia,
faremos tambem descrip-
ções e analyses,
que, uma vez feitas, passarão a ser coi-
sas alheias, que podemos gosar como se viessem na tarde.
Não é ∧este o conceito dos pessimistas, como aquelle de
Vigny, ∧para ∧quem a vida é uma cadeia, ∧onde elle tecia palha
para se distrahir.
Ser pessimista é tomar qualquer coisa
como tragico,
e essa attitude é um exaggero e um incommo-
do.
Não temos, é certo, um conceito de valia que applique-
mos á obra que produzimos. Produzimol-a,
é certo, para
nos distrahir,
porém não como o preso que tece a palha,
para se distrahir do Desti-
no, senão da menina que borda almofadas, para se distra-
hir,
sem mais nada.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me
demorar até que chegue a diligencia do abysmo.
Não sei ∧onde
ella me levará, porque não sei nada. Poderia considerar
esta estalagem uma prisão, porque estou compellido a
aguardar nella;
poderia consideral-a um logar de socia-
veis,
porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém,
nem impaciente nem commum.
Deixo ao que são os que se
fecham no quarto, deitados molles na cama onde esperam ∧sem somno;
deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde
as musicas e as vozes chegam commodas até mim. Sento-me
á porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos
sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos can-
tos que componho emquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a
diligencia. Goso a brisa que me dão e a alma que me de-
ram para gosal-a,
e não interrogo mais nem procuro. Se
o que deixar escripto no livro dos viajantes puder,
reli-
do um dia por outros, entretel-os tambem na passagem,
será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem
tambem.
∧A Estalagem da Razão
∧A meio caminho entre a fé e a critica está
a estalagem da razão. A razão é a fé no que se
pode comprehender sem fé; mas é uma fé ainda,
porque comprehender ∧involve presuppor que ha
qualquer cousa comprehensivel.