Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-18r)

A Morte do Principe


                                5/10/1932.


A Morte do Principe.

Porque não será tudo uma verdade inteira-
mente differente, sem deuses, nem homens,
nem razões? Porque não será tudo qualquer
cousa que não podemos sequer conceber que
não concebemos — um mysterio de outro mundo
inteiramente? Porque não seremos nós —
homens, deuses, e mundo — sonhos que alguem
sonha, pensamentos que alguem pensa, postos
fóra sempre do que existe? E porque não será
esse alguem que sonha ou pensa alguem que
nem sonha nem pensa, subdito elle-mesmo do
abysmo e da ficção? Porque não será tudo
outra-cousa, e cousa nenhuma, e o que
não é a unica cousa que existe? Em que parte
estou que vejo isto como cousa que pode ser?
Em que ponte passo que por baixo de mim, que
estou tam alto, estão as luzes de todas as
cidades do mundo e do outro mundo, e as
nuvens das verdades desfeitas que pairam a-
cima e ellas todas buscam, como se buscassem
o que se pode cingir?

Tenho febre sem somno, e estou vendo sem
saber o que vejo. Ha grandes planicies tudo
à roda, e rios ao longe, e montanhas... Mas
ao mesmo tempo não ha nada d'isto, e estou
com o principio dos deuses e com um grande
horror de partir ou de ficar, e de onde es-
tar e de o que ser. E tambem este quarto on-
de te ouço olhar-me é uma coisa que conheço
e como que vejo; e todas estas coisas estão
juntas, e estão separadas, e nenhuma d'ellas
é o que é outra cousa que estou a ver se ve-
jo.

Para que me deram um reino que ter se não
terei melhor reino que esta hora em que es-
tou entre o que não fui e o que não serei?