Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-17)

Diario Lucido


L. do D.
                    Diário Lucido

A minha vida, tragedia cahida sob a pateada dos anjos (deuses)
e de que só o primeiro acto se representou.

Amigos, nenhum. Só uns conhecidos que julgam que sympathisam
commigo e teriam talvez pena se um comboio me passasse por
cima e o enterro fôsse em dia de chuva.

O premio natural do meu affastamento da vida foi a incapacidade,
que creei nos outros, de sentirem commigo. Em torno a mim ha
uma aureola de frieza, um halo de gelo que repelle os outros.
Ainda não consegui não soffrer com a minha solidão. Tão
difficil é obter aquella distincção de espirito que permitta
ao isolamento ser um repouso sem angustia.

Nunca dei credito á amisade que me mostraram, como o não teria
dado ao amor, se m'o houvessem mostrado, o que, aliás, seria
impossivel. Embora nunca tivesse illusões a respeito d'aquelles
que se diziam meus amigos, consegui sempre soffrer desillusões
com elles — tão complexo e subtil é o meu destino de soffrer.

Nunca duvidei que todos me trahissem; e pasmei sempre quando
me trahiram. Quando chegava o que eu esperava, era sempre in-
esperado para mim.

Como nunca descobri em mim qualidades que attrahissem alguem,
nunca pude acreditar que alguem se sentisse attrahido por mim.
A opinião seria de uma modestia estulta, se factos sobre factos —
aquelles inesperados factos que eu esperava — a não viessem con-
firmar sempre.

Nem posso conceber que me estimem por compaixão, porque, em-
bora physicamente desageitado e inacceitavel, não tenho aquelle
grau de amarfanhamento organico com que entre na orbita da com-
paixão alheia, nem mesmo aquella sympathia que a attrahe quan-
do ella não seja patentemente merecida; e para o que em mim
merece piedade, não a pode haver, porque nunca ha piedade para
os aleijados do espirito. De modo que cahi naquelle centro de
gravidade do desdem alheio, em que não me inclino para a sympa-
thia de ninguem.

Toda a minha vida tem sido querer adaptar-me a isto sem lhe
sentir demasiadamente a crueza e a abjecção.

É preciso certa coragem intellectual para um individuo reco-
nhecer destemidamente que não passa de um farrapo humano, aborto
sobrevivente, louco ainda fóra das fronteiras da internabilidade;
mas é preciso ainda mais coragem de espirito para, reconhecido
isso, crear uma adaptação perfeita ao seu destino, acceitar sem
revolta, sem resignação, sem gesto algum, ou esboço de gesto,
a maldição organica que a Natureza lhe impoz. Querer que não
soffra com isso, é querer de mais, porque não cabe no humano o
acceitar o mal, vendo-o bem, e chamar-lhe bem; e, acceitando-o
como mal, não é possivel não soffrer com elle.

Conceber-me de fóra foi a minha desgraça — a desgraça para a mi-
nha felicidade. Vi-me como os outros me vêem, e passei a despre-
zar-me — não tanto porque reconhecesse em mim uma tal ordem de


qualidades que eu por ellas merecesse desprezo, mas porque passei a vêr-me
como os outros me vêem e a sentir um desprezo qualquer que elles
por mim sentem. Soffri a humilhação de me conhecer. Como este
calvario não tem nobreza, nem ressurreição dias depois, eu não
pude senão soffrer com o ignobil d'isto.

Comprehendi que era impossivel a alguem amar-me, a não ser que
lhe faltasse de todo o senso esthetico — e então eu o despreza-
ria por isso; e que mesmo sympathisar commigo não podia passar
de um capricho da indifferença alheia.

Vêr claro em nós e em como os outros nos vêem! Ver esta verdade
frente a frente! E no fim o grito de Christo no calvario, quando
viu, frente a frente, a sua verdade: Senhor, senhor, porque me
abandonaste?