A alma humana é victima


L. do D.

A alma humana é victima tão inevitavel da dor que soffre a dor da surpreza dolorosa, mesmo com o que devia esperar. Tal homem, que toda a vida fallou da inconstancia e da volubilidade feminina como de cousas naturaes e typicas, terá toda a angustia da surpreza triste quando se encontre trahido em amor — tal qual, não outro, como se tivesse sempre tido por dogma ou esperança a fidelidade e a firmeza da mulher. Tal outro, que tem tudo por ôco e vazio, sentirá como um raio subito a descoberta de que teem por nada o que escreve, ou que é esteril o seu esforço por ensinar ou que é falsa a comunicabilidade da sua emoção.

Não ha que crer que os homens, a quem estes desastres acontecem, e outros desastres como estes, houvessem sido pouco sinceros nas cousas que disseram, ou que escreveram, e em cuja substancia esses desastres eram previsiveis ou certos. Nada tem a sinceridade da affirmação intelligente com a naturalidade da emoção espontanea. E isto parece poder ser assim, a alma parece poder assim ter surprezas, só para que a dôr lhe não falte, o opprobio não deixe de lhe caber, a magoa não lhe escaceie como quinhão /egualitario/ na vida. Todos somos eguaes na capacidade para o erro e para o soffrimento. Só não passa quem não sente; e os mais altos, os mais nobres, os mais previdentes, são os que vem a passar e a soffrer do que previam e do que desdenhavam. É a isto que se chama a Vida.


Título: A alma humana é victima
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: II
Número: 443
Página: 188 - 189
Nota: [5-28, ms.];