A alma humana é victima


L do D

A alma humana é victima tão inevitavel
da dor que soffre a dor da surpreza dolorosa
mesmo com o que devia esperar. Tal homem,
que toda a vida fallou da inconstancia e
da volubilidade femininas como de
cousas naturaes e typicas, terá toda a
angustia da surpreza triste quando se
encontre trahido em amor — tal
qual, não outro, como se tivesse sem-
pre tido por dogma ou esperança
a fidelidade e a firmeza da mulher.
Tal outro, que tem tudo por ôco
e vazio, sentirá como um raio
subito a descoberta de que teem por
nada o que escreve, de que
é esteril o seu exforço por ensinar,
de que é falsa a com-
municabilidade da sua emoção.


2

Não ha que crer que os homens, a
quem estes desastres acontecem, e
outros desastres como estes, houvessem sido
pouco sinceros nas cousas que disseram,
ou que escreveram, e em cuja substancia
esses desastres eram previsiveis ou certos.
Nada tem a sinceridade da affirmação
intelligente com contra a naturalidade da
emoção espontanea. E isto parece
poder ser assim, a alma parece
poder assim ter surprezas, só para que
a dôr lhe não falte, o opprobio não
deixe de lhe caber, a magua não
lhe escasseie como quinhão egualitario
na vida. Todos somos eguaes na
capacidade para o erro e para
o soffrimento. Só não passa quem não
sente; e os mais altos, os mais nobres, os
mais previdentes, são os que vem a passar e

a soffrer do que previam e do que desdenhavam. É a isto
que se chama a Vida.


Identificação: bn-acpc-e-e3-5-1-85_0055_28_t24-C-R0150 | bn-acpc-e-e3-5-1-85_0056_28v_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (17.6cm X 14.0cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Manuscrito (pen) : Testemunho manuscrito a tinta preta.
Data: 1917 (low)
Nota: LdoD, Texto escrito em recto e verso de uma folha pautada de um caderno de notas.
Fac-símiles: BNP/E3, 5-28.1 , BNP/E3, 5-28.2