Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(194)

Quando nasceu a geração


L. do D.

1st. article

Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cerebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destructivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranquillidade que nos dar na ordem politica. Nascemos já em plena angustia metaphysica, em plena angustia moral, em pleno desasocego politico. Ebrias das formulas externas, dos meros processos da razão e da sciencia, as gerações, que nos precederam, alluiram todos os fundamentos da fé christan, porque a sua critica biblica, subindo de critica dos textos a critica mythologica, reduziu os evangelhos e a anterior hierographia dos judeus a um amontoado incerto de mythos, de legendas e de mera literatura; e a sua critica scientifica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da "sciencia" primitiva dos evangelhos; e, ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que poz em praça todos os problemas metaphysicos, arrastou com elles os problemas religiosos onde fossem da metaphysica. Ebrias de uma cousa incerta, a que chamaram "positividade", essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doctrinas, só ficou a certeza de nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturaes não podia, evidentemente ser senão victima, na política, d'essa indisciplina; e assim foi que acordámos para um mundo avido de novidades sociaes, e com alegria ia á conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um progresso que nunca definira.

Mas o criticismo fruste dos nossos paes, se nos legou a impossibilidade de ser christãos, não nos legou o contentamento com que a tivessemos; se nos legou a descrença nas formulas moraes estabelecidas, não nos legou a indifferença á moral e ás regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema politico, não deixou inddiferente o nosso espirito a como esse problema se resolvesse. Nossos paes destruiram contentemente, porque viviam em uma epocha que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquillo mesmo que elles destruiam, que dava força á sociedade, para que pudessem destruir sem sentir o edificio rachar-se. Nós herdámos a destruição e os seus resultados.

Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estupidos, aos insensiveis e aos agitados. O direito a viver e a triumphar conquista-se hoje quasi pelos mesmos processos, por que se conquista o internamento num manicomio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.