Café - Usa (BNP/E3, 2-11)

No nevoeiro leve da manhã


L. do D.

No nevoeiro leve da manhã de meia-primavera, a
Baixa disperta entorpecida e o sol nasce como que se fôra lento.
Ha uma alegria socegada no ar com metade de frio, e a
vida, ao sopro leve da brisa que não ha, tirita vagamente
do frio que já passou, pela lembrança do frio mais que
pelo frio, pela comparação com o verão proximo, mais que
pelo tempo que está fazendo.

Não abriram ainda as lojas, salvas salvo as leita-
rias e os cafés, mas o repouso não é de torpor, como o
de domingo; é de repouso apenas. Um vestigio louro ante-
cede-se no ar que se revela, e o azul córa pallidamente
atravez da bruma que se esfina. O começo do movimento
rareia pelas ruas, destaca-se a separação dos peões, e
nas poucas janellas abertas, altas, madrugam tambem ap-
parecimentos. Os electricos traçam estrondeiam a meio-ar o seu vinco
mobil amarello e numerado. E, de minuto a minuto, sensi-
velmente, as ruas desdesertam-se.

Vogo, attenção só dos sentidos, sem pensamento
nem emoção. Dispertei cedo; vim para a rua sem preconcei-
tos. Examino como quem scisma. Vejo como quem pensa. E
uma leve nevoa de emoção se ergue absurdamente em mim;
a bruma que vae sahindo do exterior parece que se me in-
filtra lentamente.

Sem querer, sinto que tenho estado a pensar na
minha vida. Não dei por isso, mas assim foi. Julguei que
sòmente via e ouvia, que não era mais, em todo este meu
percurso ocioso, que um reflexor de imagens dadas, um
biombo branco onde a realidade projecta cores e luz em
vez de sombras. Mas era mais, sem que o soubesse. Era
ainda a alma que se nega, e o meu proprio abstracto ob-
servar era uma negação ainda.

Tolda-se o ar de falta de nevoa, tolda-se de luz
pallida, em a qual a nevoa como que se mixturou. Reparo
subitamente que o ruido é muito maior, que muito mais
gente existe. Os passos dos mais transeuntes são menos
apressados. Apparece, a quebrar a sua ausencia e a
menor pressa dos outros, o correr andado das varinas, a
oscillação dos padeiros, monstruosos de cesto, e [a] egualda-
de divergente das vendeiras de tudo mais desmonotoniza-
se só no conteúdo das cestas, onde as côres divergem mais
que as coisas. Os leiteiros chocalham, como chaves ôcas
e absurdas, as latas deseguaes do seu officio andante.
Os policias estagnam nos cruzamentos, desmentido parado fardado
da civilização ao movimento invisivel da subida do dia.

Quem me dera, neste momento o sinto, ser alguem
que pudesse ver isto como se não tivesse com elle mais
relação que o vel-o — contemplar tudo como se fôra o via-


jante adulto chegado hoje á superficie da vida! Não ter
aprendido, da nascença em deante, a dar sentidos
dados a estas coisas todas, poder vel-as na expressão que
teem separadamente da expressão que lhes foi imposta. Po-
der conhecer na varina a sua realidade humana independen-
te de se lhe chamar varina, e de saber que existe e
que vende. Vêr o policia como Deus o vê. Reparar em tudo
pela primeira vez, não apocalypticamente, como revelações
do Mysterio, mas directamente como florações da Realidade.

Soam — devem ser oito as que não conto — badala-
das de horas de sino ou relogio grande magno. Accordo de mim
pela banalidade de haver horas, clausura que a vida social
impõe á continuidade do tempo, fronteira no abstracto,
limite no desconhecido. Accordo de mim e, olhando para
tudo, agora já cheio de vida e de humanidade costumada,
vejo que a nevoa que sahiu de todo do ceu, salvo o que no
azul ainda paira de ainda não bem azul, me en-
trou verdadeiramente para a alma, e ao mesmo tempo entrou
para a parte de dentro de todas as coisas, que é por onde
ellas teem contacto com a minha alma. Perdi a visão do
que via. Ceguei com vista. Sinto já com a banalidade do
conhecimento. Isto agora não é já a Realidade: é simples-
mente a Vida.

... Sim, a vida a que eu tambem pertenço, e que
tambem me pertence a mim; não já a Realidade, que é só de
Deus, ou de si mesma, que não contem mysterio nem verdade,
que, pois que é real ou o finge ser, algures existe fixa,
livre de ser temporal ou eterna, imagem absoluta, idéa
de uma alma que fôsse exterior.

Volvo lentos os passos, mais rapidos do que julgo,
ao portão para onde subirei de novo para casa. Mas não en-
tro; hesito; sigo para deante. A Praça da Figueira, boce-
jando venderes de varias côres, cobre-me esfreguezando-se o horizonte de
ambulante. Avanço lentamente, morto, e a minha visão já
não é minha, já não é nada: é só a do animal humano que
herdou sem querer a cultura grega, a ordem romana, a moral christã
e todas as mais illusões que formam a civilização em que sinto.

Onde estarão os vivos?