Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 5-58r)

O Amante Visual


L. do D.
O Amante Visual.

Nem em torno d'essas figuras, com cuja con-
templação me entretenho, é meu costume tecer qualquer
enredo da fantasia. Vejo-as, e o valor d'ellas para mim
está só em serem vistas. Tudo mais, que lhes accrescen-
tasse, diminuil-as-hia, porque diminuiria, por assim
dizer, a sua "visibilidade".

Quanto eu fantasiasse d'ellas, forçosamente,
no proprio momento de fantasiar, eu o conheceria como
falso; e, se o sonhado me agrada, o falso me repugna.
O sonho puro encanta-me, o sonho que não tem relação
com a realidade, nem ponto de contacto com ella. O so-
nho imperfeito, com ponto de partida na vida, desgos-
ta-me, ou, antes, me desgostaria se eu me embrenhasse
nelle.

Para mim a humanidade é um vasto motivo de
decoração, que vivo pelos olhos e pelos ouvidos, e, a-
inda, pela emoção psychologica. Nada mais quero da vi-
da senão o assistir a ella. Nada mais quero de mim se-
não o assistir á vida.

Sou como um ser de outra existencia que pas-
sa indefinidamente interessado atravez d'esta. Em tudo
sou alheio a ella. Ha entre mim e ella como um vidro.
Quero esse vidro sempre muito claro, para a poder exa-
minar sem falha de meio intermedio; mas quero sempre o
vidro.

Para todo espirito scientifi-
camente constituido, vêr numa coisa mais que o que lá
está é vêr menos essa coisa. O que materialmente se
accrescenta, espiritualmente a diminue.

Attribúo a este estado de alma a minha repug-
nancia pelos museus. O museu, para mim, é a vida in-
teira, em que a pintura é sempre exacta, e só pode ha-
ver inexactidão na imperfeição do contemplador. Mas
essa imperfeição, ou faço por diminuil-a, ou, se não
posso, contento-me com que assim seja, poisque,
como tudo, não pode ser senão assim.