Escrevo com uma estranha mágoa


Escrevo com uma estranha mágoa, servo de uma sufocação intelectual, que me vem da perfeição da tarde. Este céu de azul precioso, desmaiando para tons de cor-de-rosa pálido sob uma brisa igual e branda, dá-me à consciência de mim uma vontade de eu gritar. Estou escrevendo, afinal, por fuga e refúgio. Evito as ideias. Esqueço as expressões exactas, e elas abrilham-se-me no acto físico de escrever, como se a mesma pena as produzisse.

Do que pensei, do que só senti, sobrevive, obscura, uma vontade inútil de chorar.


Título: Escrevo com uma estranha mágoa
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 22
Página: 64
Data: 24-07-1930 (medium)
Nota: [60A-22, ms.];
Nota: No rosto encontra-se o poema "Brisa Irreal da aurora", datado de 24/7/1930 e publicado na edição crítica de Fernando Pessoa Vol.I, Tomo III. Este poema é do ortónimo Fernando Pessoa. Na coluna direita da folha encontramos um outro fragmento a lápis e algumas linhas soltas a tinta preta: "Não é nada a manhã | É só um tempo | É só uma ☐".