(cop. duma carta para Pretoria)
L. do Des.
(cop. duma carta para Pretoria)
"Eu tenho passado bem de saúde e o espirito tem estado curiosamente menos
mal-disposto. Ainda assim uma vaga inquietação anda a torturar-me, uma cousa
a que eu não posso chamar senão uma comichão intellectual, como se eu fosse
ter bexigas na alma. É só nesta linguagem absurda que eu lhe posso descrever
o que sinto. Tudo isto, porém, não se aparenta propriamente com aquelles es-
tados tristes de espirito, de que ás vezes lhe fallo, e em que a tristeza é
caracterisadamente uma tristeza sem causa. Este meu estado de alma actual
tem uma causa. Em torno a mim está-se tudo afastando e desmoronando. Não em-
prego estes dois verbos no sentido entristecedor. Quero apenas dizer que na
gente com quem lido se estão dando, ou se vão dar, mudanças, acabares de pe-
riodos de vida, e que tudo isto — como a um velho que vê morrerem em seu re-
dór os seus companheiros de infancia, a sua morte parece proxima — me suggere
não sei de que mysteriosa maneira, que a minha deve, vae, mudar também. Re-
pare que eu não creio que esta mudança vá ser para peor; creio o contrario.
Mas é uma mudança, e para mim mudar, passar de uma cousa para ser outra, é
uma morte parcial; morre qualquér cousa de nós, e a tristeza do que morre e
do que passa não pode deixar de nos roçar pela alma.
Veja: Amanhã vae para — não a, mas para — Paris o meu maior e mais intimo
amigo. A tia Annica (veja a carta della) não é improvavel que vá breve para
a Suissa com a filha, casada então. Vae para a Galliza, para lá estar bas-
tante tempo, um outro rapaz muito meu amigo. Passa a viver no Porto um ou-
tro rapaz que é, depois do primeiro que lhe citei, o meu amigo mais proximo.
Assim, em meu redor humano, tudo se organiza (ou se desorganiza) de modo a
ir-me, não sei se isolando, não sei se chamando para um novo caminho que não
vejo. Mesmo a circumstancia de eu ir publicar um livro vem alterar a minha
vida. Perco uma coisa — o ser inedito. E assim mudar para melhor, porque
mudar é mau, é sempre mudar para peor. E perder um defeito, ou uma defici-
encia, ou uma negação, sempre é perder. Imagine a Mamã como não viverá, de
dolorosas sensações quotidianas, uma creatura que sente desta maneira!
Que serei eu daqui a dez annos — de aqui a cinco annos, mesmo? Os meus a-
migos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas contemporaneos — dizem-o
vendo o que eu tenho já feito, não o que poderei fazer (senão eu não citava
o que elles dizem...) Mas sei eu ao certo o que isso, mesmo que se realize,
significa? Sei eu a que isso sabe? Talvez a gloria saiba a morte e a inuti-
lidade, e o triumpho cheire a podridão.
(Carta de 5/6/1914)