O desgosto de não encontrar nada encontrei comigo pouco a pouco. Não achei razão nem lógica senão a um cepticismo que nem sequer buscou uma lógica para se defender. Em curar-me disto não pensei — porque me havia eu de curar disso. E o que era ser são? Que certeza tinha eu que esse estado de alma era pertença à doença? Que nos definia que, a ser doença, a doença não era mais desejável, ou mais lógica ou mais (...) do que a saúde? A ser a saúde preferível, porque era eu doente se não por naturalmente o ser, e se naturalmente o era, por que ir contra a Natureza, que para algum fim, se fim ela tem, me quereria decerto doente?
Nunca encontrei argumentos senão para a inércia. Dia a dia mais e mais se infiltrou em mim a consciência sombria da minha inércia de abdicador. Procurar modos de inércia, aprestar-me a fugir a todo o esforço quanto a mim, a toda a responsabilidade social — talhei nessa matéria de (...) a estátua pensada da minha existência.
Deixei leituras, abandonei casuais caprichos de este ou aquele modo estético da vida. Do pouco que li, aprendi a extrair só elementos para o sonho. Do pouco que presenciava, apliquei-me a tirar apenas o que se podia, em reflexo /distante/ e errado, prolongar mais dentro de mim. /Esforcei-me/ por que todos os meus pensamentos, todos os capítulos quotidianos da minha experiência me fornecessem apenas sensações. Criei à minha vida uma orientação estética. E orientei essa estética para puramente individual. Fi-la minha apenas.
Apliquei-me depois, no decurso procurado do meu hedonismo interior, a furtar-me às sensibilidades sociais. Lentamente me couracei contra o sentimento do ridículo. Ensinei-me a ser insensível, quer para os apelos dos instintos, quer para as solicitações de (...)
Reduzi ao mínimo o meu contacto com os outros. Fiz o que pude para perder toda a afeição à vida, (...) Do próprio desejo da glória lentamente me despi, como quem cheio de cansaço se despe para repousar.
Concentrei e limitei os meus desejos para os poder requintar melhor. Para se chegar
ao infinito, e julgo que se pode lá chegar, é preciso termos um porto, um só, firme, e
partir dali para [o] Indefinido.
Hoje sou ascético na minha religião de mim. Uma chávena de café, um cigarro e os meus sonhos substituem bem o universo e as suas estrelas, o trabalho, o amor, até a beleza e a glória.
Não tenho quase necessidade de estímulos. Ópio tenho-o eu na alma.
Que sonhos tenho? Não sei. Forcei-me por chegar a um ponto onde nem saiba
já em que penso, com que sonho, o que visiono. Parece-me que sonho cada
vez de mais longe, que cada vez mais sonho o vago, o impreciso, o invisionável.
Não tenho teorias a respeito da vida. Se ela é boa ou má não sei, não penso. Para meus olhos é dura e triste, com sonhos deliciosos de permeio. Que me importa o que ela é para os outros?
A vida dos outros só me serve para eu lhes viver, a cada um, a vida que me parece que lhes convém no meu sonho.