Edição Teresa Sobral Cunha - Usa Teresa Sobral Cunha(155)

O RIO DA POSSE


O RIO DA POSSE

Que somos todos diferentes, é um axioma da nossa humanidade. Só nos parecemos de longe, na proporção, portanto, em que não somos nós. A vida é, por isso, para os indefinidos; só podem conviver os que nunca se definem, e são, um e outro, ninguém.

Cada um de nós é dois, e quando duas pessoas se encontram, se aproximam, se ligam, é raro que as quatro possam estar de acordo. O homem que sonha em cada homem /que age/, se tantas vezes se /malquista/ com o homem que age, como não se malquistará com /o homem que age e o homem que sonha no Outro/.

Somos forças porque somos vidas. Cada um de nós tende para si próprio através dos outros. Se temos por nós mesmos o respeito de nos acharmos interessantes, (...). Toda a aproximação é um conflito. O outro é sempre o obstáculo para quem procura. Só quem não procura é feliz; porque só quem não busca encontra, visto que quem não procura já tem, e já ter, seja o que for, é ser feliz (como não pensar é a parte mais feliz de ser rico.)

Olho para ti, dentro de mim, noiva suposta, e já nos /desavimos/ antes de existires. O meu hábito de sonhar claro dá-me uma noção justa da realidade. Quem sonha de mais precisa de dar realidade ao sonho. Quem dá realidade ao sonho tem que dar ao sonho o equilíbrio da realidade. Quem dá ao sonho o equilíbrio da realidade, sofre da realidade de sonhar tanto como da realidade da vida (e do irreal do sonho com o de sentir a vida irreal).

Estou-te esperando, em devaneio, no nosso quarto com duas portas, e sonho-te vindo e no meu sonho entras até mim pela porta da direita; se, quando entras, entras pela porta da esquerda, há já uma diferença entre ti e o meu sonho. Toda a tragédia humana está neste pequeno exemplo de como aqueles em quem pensamos nunca são aqueles em quem pensamos, (...)

O amor perde identidade na diferença, o que é impossível já na lírica, quanto mais no mundo. O amor quer possuir, quer tornar seu o que tem de ficar fora para ele saber que se torna dele e não é ele. Amar é entregar-se. Quanto maior a entrega, maior o amor. Mas a entrega total entrega também a consciência do outro. O amor maior é por isso a morte, ou o esquecimento, ou a renúncia — as coisas todos que são os absurdiandos do amor.

No terraço antigo do palácio, alçado sobre o mar, meditaremos em silêncio a diferença entre nós. Eu era príncipe e tu princesa, no terraço à beira do mar. O nosso amor nascera do nosso encontro, como a beleza se criou do encontro da lua com as águas.

O amor quer a posse, mas não sabe o que é a posse. Se eu não sou meu, como serei teu, ou tu minha? Se não possuo o meu próprio ser, como possuirei um ser alheio? Se sou já diferente daquele de quem sou idêntico, como serei idêntico daquele de quem sou diferente?

O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser possível.

Metafísico. Mas toda a vida é uma metafísica às escuras, com um rumor de deuses e o desconhecimento da via como única via.

A pior astúcia comigo da minha /decadência/ é o meu amor à saúde e à claridade. Achei sempre que um corpo belo e o ritmo feliz de um andar jovem tinham mais competência no mundo que todos os sonhos que há em mim. É com uma alegria da velhice do espírito que sigo às vezes — sem inveja nem desejo — os pares casuais que a tarde junta e caminham braço com braço para a consciência /transbordante/ da juventude. Gozo-os como gozo uma verdade, sem que pense se me diz ou não respeito. Se os comparo a mim, continuo gozando-os, mas como quem goza uma verdade que o fere, juntando à dor da ferida o orgulho de ter compreendido os deuses.

Sou o contrário dos platónicos simbolistas, para quem todo o ser, e todo o acontecimento, é a sombra de uma realidade de que é a sombra apenas. Cada coisa, para mim, é, em vez de um ponto de chegada, um ponto de partida. Para o ocultista tudo acaba em tudo; tudo começa em tudo, para mim.

Procedo, como eles, por analogia e sugestão, mas o jardim pequeno que lhes sugere a ordem e a beleza da alma, a mim não lembra mais que o jardim maior onde possa ser, longe dos homens, feliz a vida que o não pode ser. Cada coisa sugere-me não a realidade de que é a sombra, mas a realidade para que é o caminho.

O Jardim da Estrela, à tarde, é para mim a sugestão de um parque antigo, no século anterior do descontentamento da alma.