Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(272)

Desde o meio do seculo dezoito


Desde o meio do seculo dezoito que uma
doença terrivel baixou progressivamente sobre
a civilização. Dezasete seculos de aspiração
christan constantemente illudida, cinco
seculos de aspiração pagan perennemente
postergada — o catholicismo que fallira
como christismo, a renascença que
fallira como paganismo, a reforma
que fallira como phenomeno universal.
O desastre de tudo quanto se sonhára, a
vergonha de tudo quanto se conseguira,
a miseria de viver sem vida digna
que os outros pudessem ter comnosco, e
sem vida dos outros que pudessemos dignamente ter.


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Isto cahiu nas almas e envenenou-
as. O horror á acção, por ter de ser vil
numa sociedade vil, inmundou os
espiritos. A actividade superior da
alma adoeceu; só a actividade in-
ferior, porque mais vitalizada, não
decahiu; inerte a outra, as-
sumiu a regencia do mundo.

Assim nasceu uma litteratura e uma arte
feitas de elementos secundarios do
pensamento — o romantismo; e uma vida
social feita de elementos secundarios
da actividade — a democracia moderna.


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As almas nascidas para mandar
só tinham o remedio de abster-se. As
almas nascidas para crear, numa socie-
dade onde as forças creadoras falliam,
tinham por unico mundo plastico
á sua vontade o mundo irreal dos
seus sonhos, a esterilidade introspectiva
da propria alma.

Chamamos "romanticos", por egual,
aos grandes que falliram e aos pequenos
que se revelaram. Mas não
ha semelhança senão na sentimentali-
dade evidente; mas em uns a senti-


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mentalidade mostra a impossibilidade
do uso activo da intelligencia; em outros
mostra a ausencia da propria intelli-
gencia. São fructo da mesma epocha um
Châteaubriand e um Hugo, um Vigny
e um Michelet. Mas um Châteaubriand
é uma alma grande que diminue; um
Hugo é uma alma pequena que se dis-
tende com o vento do tempo; um
Vigny é um genio que teve de fugir; um
Michelet uma mulher que teve de
ser homem de genio. No pae de todos, Jean
Jacques Rousseau, as duas tendencias estão junctas. A
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intelligencia nelle era de creador,
a sensibilidade de escravo. Affirma
ambas por egual. Mas a sensibilidade
social, que tinha, envenenou as suas
theorias, que a intelligencia apenas dispoz
claramente. A intelligencia que tinha só
serviu para gemer a miseria de
coexistir com tal sensibilidade.

J.J. Rousseau é o homem moderno; mas
mais completo que qualquer homem moderno.
Das fraquezas que o fizeram fallir
tirou — ai de elle e de nós! — as forças
que o fizeram triumphar. O que partiu


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d'elle venceu, mas nos labaros da sua
victoria, quando entrava na Cidade,
viu-se que estava escripta, como lemma, a
palavra "Derrota". No que d'elle
fica para traz, incapaz do esforço
de vencer, fôram as corôas e os
sceptros, a magestade de mandar e
a gloria de vencer por destino in-
terno.
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                II

O mundo, no qual nascemos, soffre
do seculo e meio de renuncia e de
violencia — da renuncia dos superiores e
da violencia dos inferiores, que é a sua victo-
ria.

Nenhuma qualidade superior póde af-
firmar-se modernamente, tanto na acção, como
no pensamento, na esphera politica, como na
especulativa.


A ruina da influencia aristocratica
creou uma atmosphera de brutalidade e
de indifferença pelas artes, onde uma sensibilidade
fina não tem refugio. Doe mais, cada
vez mais, o contacto da alma com a vida.
O exforço é cada vez mais doloroso, porque
são cada vez mais odiosas as condições externas
do exforço.



            2

A ruina dos ideaes classicos fez de
todos artistas possiveis, e portanto maus ar-
tistas. Quando o criterio da arte era
a construcção solida, a observancia cuidada de
regras — poucos podiam tentar ser artistas,
e grande parte d'esses são muito bons. Mas
quando a arte passou de ser tida como
creação, para passar a ser tida como
expressão de sentimentos, cada qual podia
ser artista, porque todos teem sentimentos.