Peristylo


Peristylo

Às horas em que a paysagem é uma auréola de vida, e o sonho é apenas sonhar-se, eu ergui, ó meu amôr, no silencio do meu desassocego, este livro extranho como portões abertos n'uma casa ao fim alameda abandonada.

Colhi para escrevel-o a alma de todas as flores, e dos momentos ephemeros de todos os cantos de todas as aves, teci eternidade e estagnação. Tecedeira (...), sentei-me à janella da minha vida e esqueci que habitava e era, tecendo lençoes para o meu tedio amortalhar nas toalhas de linho casto para os altares do meu silencio, (...)

E eu offereço-te este livro porque sei que elle é bello e inutil. Nada ensina, nada faz crêr, nada faz sentir. Regato que corre para um abysmo — cinza que o vento espalha e nem fecunda nem é damninha [?],

— puz toda a alma ao fazel-o, mas não pensei n'elle fazendo-o, mas só em mim que sou triste e em ti que não és ninguem.

E porque este livro é absurdo, eu o amo; porque é inutil, eu o quero dar; e porque de nada serve querer t'o dar, eu, t'o dou...

Reza por mim o lêl'o, abençôa- me de amal-o e esquece-o como o sol de hoje ao sol de hontem (como eu esqueço aquellas mulheres nos sonhos que nunca soube sonhar).

Torre do Silencio das minhas ancias, que este livro seja o luar que te fez outra na noite do Mysterio Antigo!

Rio de Imperfeição dolorida, que este livro seja o barco deixado ir por tuas aguas abaixo para acabar mar que se sonhe [?]

Paysagem do Alhéamento e do Abandono, que este livro seja teu como a tua Hora, e se illimite de ti como da Hora da púrpura falsa.


Título: Peristylo
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 246
Página: 275 - 276
Nota: [9-39, ms.];