L. do D.
Viver é ser outro. Nem sentir é possivel se hoje se sente como hontem se sentiu: sentir hoje o mesmo que hontem não é sentir — é lembrar hoje o que se sentiu hontem, ser hoje o cadaver vivo do que hontem foi a vida perdida.
Apagar tudo do quadro de um dia para outro, ser novo com cada nova madrugada, numa revirgindade perpetua da emoção — isto, e só isto, vale a pena ser ou ter, para ser ou ter o que imperfeitamente somos.
Esta madrugada é a primeira do mundo. Nunca esta côr rosa amarellecendo para branco quente pousou assim na face com que a casaria de oeste encara cheia de olhos vidrados o silencio que vem na luz crescente. Nunca houve esta hora, nem esta luz, nem este meu ser. Amanhã o que fôr será outra cousa, e o que eu vir será visto por olhos recompostos, cheios de uma nova visão.
Altos montes da cidade! Grandes architecturas que as encostas ingremes seguram e engrandecem, resvalamentos de edificios diversamente amontoados, que a luz tece de sombras e queimações — sois hoje, sois eu, porque vos vejo sois o que [...] e amo-vos da amurada como um navio que passa por outro navio e ha saudades desconhecidas [?] na passagem.