Ler o Escrever - Usa LdoD-Arquivo(294)

Trecho.


Trecho.

A manhã, meio fria, meio morna, alava-se pelas casas
raras das encostas no extremo da cidade. Uma nevoa ligeira,
cheia de despertar, esfarrapava-se, sem contornos, no ador-
mecimento das encostas. (Não fazia frio, salvo em ter que
recomeçar a vida.) E tudo aquillo — toda esta frescura
lenta da manhã leve, era analogo a uma alegria que elle nun-
ca pudera ter.

O carro descia lentamente, a caminho das avenidas.
Á medida que se approxima do maior agglomeramento das casas,
uma sensação de perda tomava-lhe o espirito vagamente. A
realidade humana começava a despontar.

Nestas horas matinaes, em que a sombra já desappareceu,
mas não ainda o seu peso leve, o espirito que se deixa levar
pelos incitamentos da hora appetece a chegada e o porto an-
tigo ao sol. Alegraria, não que o instante se fixasse, como
nos momentos solemnes da paysagem, ou no luar calmo sobre o
rio, mas que a vida tivesse sido outra, de modo que este mo-
mento pudesse ter um outro sabor que se lhe reconhece mais
proprio.

Adelgaçava-se mais a nevoa incerta. O sol invadia mais
as cousas. Os sons da vida accentuavam-se no arredor.

Seria certo, por uma hora como estas, não chegar nunca
á realidade humana para que a nossa vida se destina. Ficar
suspenso, entre a nevoa e a manhã, imponderavelmente, não
em espirito, mas em corpo espiritualisado, em vida-real ala-
da, aprazia, mais do que outra cousa, ao nosso desejo de
buscar um refugio, mesmo sem razão para o buscar.

Sentir tudo subtilmente torna-nos indifferentes, salvo
para o que se não pode obter — sensações por chegar a uma
alma ainda em embryão para ellas, actividades humanas con-
gruentes com sentir profundamente, paixões e emoções perdi-
das entre conseguimentos de outras especies.

As arvores, no seu alinhamento pelas avenidas, eram in-
dependentes de tudo isto.

A hora acabou na cidade, como a encosta do outro lado
do rio quando o barco toca no caes. Elle trouxe comsigo,
emquanto não tocou na margem, a paysagem da outra banda
pegada á amurada; ela despegou-se quando se deu o
som da amurada a tocar nas pedras. O homem de calças arre-
gaçadas sobre o joelho deitou um grampo ao cabo, e foi de-
finitivo e concludente o seu gesto natural. Terminou meta-
physicamente na impossibilidade na nossa alma de continuar-
mos a ter a alegria de uma angustia duvidosa. Os garotos
no caes olhavam para nós como para qualquer outra pessoa,
que não tivesse aquella emoção impropria para a parte util
dos embarques.