[Carta a Alvaro Pinto, 12 de Novembro de 1914]


Lisboa, 12 de Novembro de 1914

Meu caro Amigo:

Só hoje me foi entregue o seu postal do dia 7. Como o Universo, mudo constantemente, e succede que a correspondencia, muitas vezes, só depois de cinco ou seis dias seguindo a minha pista domiciliária, logra encontrar-me emfim. Com o seu postal aconteceu isto.

Ou eu me expliquei exaggeradamente mal ao Jayme Cortesão, ou elle tirou conclusões excessivas do pouco que eu disse sobre o assumpto. Isso era, de resto, natural que acontecesse, visto o proprio facto de eu sobre o assumpto ter fallado pouco.

Não mandei para ahi livro nenhum. Posto que prompto, nem sequér se encontra passado a limpo o trabalho literario de que se trata. Ha mezes escrevi para ahi, ao meu Amigo, como de costume, perguntando-lhe se a "Renascença" editaria uma plaquette minha, e expliquei que se tratava de um drama n'um acto, de um genero a que eu chamo "estático", e sobre cuja forma e feitio eu disse, para d'elle dar alguma idéa, que se assemelhava, como com effeito se assemelhava, ao escripto Na Floresta do Alheiamento que publiquei n' A Aguia.

Depois d'isto, pedia eu na carta referida que o meu Amigo me dissesse francamente se a "Renascença" podia ou queria editar aquelle trabalho. Fiz esta pergunta porque tomei os seus anteriores offerecimentos sobre editar trabalhos meus como referindo-se a trabalhos de critica ou sociologia, e não a produções propriamente literarias. Eu acrescentei, até, que de modo algum me offenderia com uma recusa. Sei bem a pouca sympathia que o meu trabalho propriamente literario obtem da maioria daquelles meus amigos e conhecidos, cuja orientação de espirito é lusitanista ou saudosista; e, mesmo que não o soubesse por elles m'o dizerem ou sem-querer o deixarem perceber, eu à-priori saberia isso, porque a mera analyse comparada dos estados psychicos que produzem, uns o saudosismo e o lusitanismo, outros obra literaria no genero da minha e da (por exemplo) do Mario de Sá-Carneiro, me dá como radical e inevitavel a incompatibilidade de aquelles para com estes. Não veja o meu caro Amigo aqui a minima sombra de despeito ou, propriamente, desapontamento; o facto, que acima lhe citei, de que eu de antemão posso calcular o effeito do que escrevo sobre este ou aquele individuo, dado que elle me tenha levantado o véu de sobre a sua orientação ou predilecção, não me deixa ter sobre o assumpto illusões que eu tenha que perder.

Foi por estas razões que eu — ao fallar-lhe do meu drama — lhe indiquei expressamente que elle era aparentado com o "Na Floresta do Alheiamento". Pelas mesmas razões conforme já disse, não me espantaria uma recusa, nem me offenderia; e essa recusa, facilitei ao meu Amigo o dar-me quando lhe pedi que me fallasse francamente.

A essa carta eu não recebi resposta, e foi isso que eu estranhei, dado que a hypothese de que a carta se perdera se encontrava affastada pelo facto de que, sendo essa carta em que eu pra ahi indicava que me mudára para a Rua Pascoal de Mello, o numero immediato de A Aguia veio endereçado já para o meu então novo domicilio.

Tomei o seu silencio por uma recusa, e mesmo com esse silencio me não offendi, tomando-o por o possivel effeito de uma prolongada hesitação — apezar de eu ter facilitado uma resposta negativa — em nitidamente me recusar a edição da obra.

Isto, que é muito pouco, é tudo que ha sobre o assumpto. Se lh'o expuz prolixamente, foi para ser explicito e para não dar com a seccura das poucas palavras, a impressão, que seria erronea — de todo erronea — de que eu, ou por isto ou por outra cousa, realmente estava melindrado.

Quanto ao referido trabalho, ou outros trabalhos quaesquer, permitta-me o meu Amigo que lhe peça para collaborar comigo em não fallarmos mais n'isso. Cessei. Compenetrei-me cellularmente da absoluta inutilidade de qualquér esforço e da ridicula incongruencia do acto fundamental de escrever — expor aos outros cousas que ou são opiniões ou sonhos como se as opiniões, quando por acaso alguma acção teem, fizessem mais do que perturbar para fora dos seus saudaveis e naturaes instinctos os pobres cerebros humanos; e como se o destino logico e nobre dos sonhos não fosse ficarem apenas sonhados dentro de nós, sem a ousada imperfeição de serem expressos. Não podendo ter a maravilhosa e natural saúde de não ter opinião nem sonhos, esforcemo-nos ao menos por adquirir a artificial saúde da renuncia.

Desculpe-me ter-lhe tomado tanto tempo, e ter acabado de modo tão indecorosamente literario.

Creia sempre seu mtº amº e grato

                                        Fernando Pessôa

Quanto ao referido trabalho, ou outros traba-
lhos quaesquer, permitta-me o meu Amigo que lhe pe-
ça para collaborar commigo em não fallarmos mais
n'isso. Cessei. Compenetrei-me progressivamente e com uma metaphysica cellular da abso-
luta inutilidade de qualquer esforço e da ridicula
incongruencia do acto fundamental de escrever —
expôr aos outros opiniões ou sonhos, como se as o-
piniões fizessem mais do que, quando por acaso algu-
ma cousa fazem, perturbar as pobres cabeças huma-
nas, e como se o destino logico dos sonhos não fos-
se ficarem apenas sonhados dentro de nós, sem a
ousada imperfeição de serem expressos. O meu Amigo
pode ver esta minha opinião actual a caminho no
Na Floresta do Alheamento, se por acaso o leu.

Fallei ao J. C., quando elle aqui esteve
em varias obras que pensava e varios varios assumptos por-
que me interessava, mas isso deve ser inteiramente
falso. Estou sempre fazendo varias obras em que nem
sequer pensei, e meditando problemas que nem um mo-
mento me preoccupam. Mas de renuncias não se faz
conversa, nem é legitimo incutir aos outros, que
trabalham e produzem, o minimo desalento que seja,
expondo-lhes opiniões depressivas.



Identificação: bn-acpc-e-e3-138-1-100_0137_69_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (22.6cm X 13.7cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Sem marca LdoD
Datiloscrito (black-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta preta. Disponível o fac-símile de apenas uma página.
Nota: , Texto escrito em recto e verso de uma folha inteira pautada. Carta dirigida a Alvaro Pinto, datada de 12 de novembro de 1914. Na edição de Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz transcreve excertos desta carta num conjunto de testemunhos iniciais de Fernando Pessoa sobre o "Livro do Desassossego" (1982: XXXV-XLVII). Trata-se de uma carta de Fernando Pessoa em que é referido o texto "Na Floresta do Alheamento". Jerónimo Pizarro transcreve excertos desta carta como Anexo ao texto 36 (2010: 638-639).
Fac-símiles: BNP/E3, 138-69r.1 , BNP/E3, 138-69r.2