Mallet - Usa Jerónimo Pizarro(456)

"ASPECTOS"


"ASPECTOS".

A obra complexa, cujo primeiro volume é este, é de substancia dramatica, embora de forma varia —aqui de trechos em prosa, em outros livros de poemas ou de philosophias.

É, não sei se um privilegio se uma doença, a constituição mental que a produz. O certo, porém, é que o author d'estas linhas — não sei bem se o author d'estes livros — nunca teve uma só personalidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão dramaticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade, supposta, que mais propriamente do que elle proprio pudesse ter esses sentimentos.

Ha authores que escrevem dramas e novellas; e nesses dramas e nessas novellas attribuem sentimentos e idéas ás figuras, que as povoam, que muitas vezes se indignam que sejam tomados por sentimentos seus, ou idéas suas. Aqui a substancia é a mesma, embora a fórma seja diversa.

A cada personalidade mais demorada, que o author d'estes livros, conseguiu viver dentro de si, elle deu uma indole expressiva, e fez d'essa personalidade um author, com um livro, ou livros, com as idéas, as emoções, e a arte dos quaes, elle, o author real (ou porventura apparente, porque não sabemos o que seja a realidade), nada tem, salvo o ter sido, no escrevel-as, o medium de figuras que elle-proprio creou.

Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão teem nada que ver com quem as escreve. Elle nem concorda com o que nellas vae escripto, nem discorda. Como se lhe fôsse dictado, escreve; e, como se lhe fosse dictado por quem fosse amigo, e portanto com razão lhe pedisse para que escrevesse o que dictava, acha interessante — porventura só por amisade — o que, dictado, vae escrevendo.

O author humano d'estes livros não conhece em si-proprio personalidade nenhuma. Quando acaso sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo vê que é um ente differente do que elle é, embora parecido; filho mental, talvez, e com qualidades herdadas, mas as differenças de ser outrem.

Que esta qualidade no escriptor seja uma forma da hysteria, ou da chamada dissociação da personalidade, o author d'estes livros nem o contesta, nem o appoia. De nada lhe serviriam, escravo como é da multiplicidade de si-proprio, que concordasse com esta, ou com aquella, theoria, sobre os resultados escriptos d'essa multiplicidade.

Que este processo de fazer arte cause extranheza, não admira; o que admira é que haja cousa alguma que não cause extranheza.

Algumas theorias, que o author presentemente tem, foram-lhe inspiradas por uma ou outra d'estas personalidades que, um momento, uma hora, uns tempos, passaram consubstanciadamente pela sua propria personalidade, se é que esta existe.

Affirmar que estes homens todos differentes, todos bem definidos, que lhe passaram pela alma incorporadamente, não existem — não pode fazel-o o author d'estes livros; porque não sabe o que é existir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que é mais real, ou real na verdade.

Estes livros serão os seguintes, por emquanto: Primeiro, este volume, "Livro do Desasocego", escripto por quem diz de si proprio chamar-se Vicente Guedes; depois "O Guardador de Rebanhos" e outros poemas e fragmentos do (tambem, e do mesmo modo, fallecido) Alberto Caeiro, que nasceu proximo de Lisboa em 1889 e morreu onde nascera em 1915. Se me disserem que é absurdo fallar assim de quem nunca existiu, respondo que tambem não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer cousa onde quer que seja.

Este Alberto Caeiro teve dois discipulos e um continuador philosophico. Os dois discipulos, Ricardo Reis e Alvaro de Campos, seguiram caminhos differentes; tendo o primeiro intensificado e tornado artisticamente orthodoxo, o paganismo descoberto por Caeiro, e o segundo, baseando-se em outra parte da obra de Caeiro, desenvolvido um systema inteiramente differente, e baseado inteiramente nas sensações. O continuador philosophico, Antonio Móra (os nomes são tão inevitaveis, tão impostos de fóra como as personalidades), tem um ou dois livros a escrever, onde provará completamente a verdade, metaphysica e practica, do paganismo. Um segundo philosopho, d'esta eschola pagan, cujo nome, porém, ainda não appareceu na minha visão ou audição interior, dará uma defeza do paganismo baseada, inteiramente, em outros argumentos.

É possivel que, mais tarde, outros individuos, d'este mesmo genero de verdadeira realidade, appareçam. Não sei; mas serão sempre bemvindos á minha vida interior, onde convivem melhor commigo do que eu comsigo viver com a realidade externa. Excuso de dizer que com parte das theorias d'elles concordo, e que não concordo com outras partes. Estas cousas são perfeitamente indifferentes. Se elles escrevem cousas bellas, essas cousas são bellas, independentemente de quaesquer considerações metaphysicas sobre os autores "reaes" d'ellas. Se, nas suas philosophias, dizem quaesquer verdades — se verdades ha num mundo que é o não haver nada — essas cousas são verdadeiras independentemente da intenção ou da "realidade" de quem as disse.

Tornando-me assim, pelo menos um louco que sonha alto, pelo mais, não um só escriptor, mas toda uma litteratura, quando não contribuisse para me divertir, o que para mim já era bastante, contribúo talvez para engrandecer o universo, porque quem, morrendo, deixa escripto um verso bello deixou mais ricos os ceus e a terra e mais emotivamente mysteriosa a razão de haver estrellas e gente.

Com uma tal falta de litteratura, como ha hoje, que pode um homem de genio fazer, se não converter-se, elle só, em uma litteratura? Com uma tal falta de gente coexistivel, como ha hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer, se não inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espirito?

Pensei, primeiro, em publicar anonymamente, em relação a mim, estas obras, e, por exemplo, estabelecer um neo-paganismo portuguez, com varios authores, todos differentes, a collaborar nelle e a dilatal-o. Mas, sobre ser pequeno de mais o meio intellectual portuguez, para que (mesmo sem inconfidencias) a mascara se pudesse manter, era inutil o exforço mental preciso para mantel-a.

Tenho, na minha visão a que chamo interior apenas porque chamo exterior a determinado "mundo", plenamente fixas, nitidas, conhecidas e distinctas, as linhas physiognomicas, os traços de caracter, a vida, a ascendencia, nalguns casos a morte, d'estas personagens. Alguns conheceram-se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente, nenhum me conheceu, excepto Alvaro de Campos. Mas, se amanhã eu, viajando na America, encontrasse subitamente a pessoa physica de Ricardo Reis, que, a meu ver, lá vive, nenhum gesto de mesmo me sahiria da alma para o corpo; estava certo tudo, mas, antes d'isso já estava certo. O que é a vida?