Intertextualidade Filosófica - Usa (BNP/E3, 20-70r-71r-72r)

"ASPECTOS"


"ASPECTOS".

A obra complexa, cujo primeiro volume é este,
é de substancia dramatica, embora de forma varia —
aqui de trechos em prosa, em outros livros de poe-
mas ou de philosophias.

É, não sei se um privilegio se uma doença, a
constituição mental, que a produz. O certo, porém,
é que o author d'estas linhas — não sei bem se o
author d'estes livros — nunca teve uma só persona-
lidade, nem pensou nunca, nem sentiu, senão drama-
ticamente, isto é, numa pessoa, ou personalidade,
supposta, que mais propriamente do que elle proprio
pudesse ter esses sentimentos.

Ha authores que escrevem dramas e novellas;
e nesses dramas e nessas novellas attribuem senti-
mentos e idéas ás figuras, que as povoam, que mui-
tas vezes se indignam que sejam tomados por senti-
mentos seus, ou idéas suas. Aqui a substancia é
a mesma, embora a fórma seja diversa.

A cada personalidade mais demorada, que o
author d'estes livros, conseguiu viver dentro de
si, elle deu uma indole expressiva, e fez d'essa
personalidade um author, com um livro, ou livros,
com as idéas, as emoções, e a arte dos quaes, el-
le, o author real (ou porventura apparente, por-
que não sabemos o que seja a realidade), nada tem,
salvo o ter sido, no escrevel-as, o medium de
figuras que elle-proprio creou.

Nem esta obra, nem as que se lhe seguirão
teem nada que ver com quem as escreve. Elle nem
concorda com o que nellas vae escripto, nem discorda.
Como se lhe fôsse dictado, escreve; e, como se
lhe fosse dictado por quem fosse amigo, e portanto
com razão lhe pedisse para que escrevesse o que
dictava, acha interessante — porventura só por ami-
sade — o que, dictado, vae escrevendo.

O author humano d'estes livros não conhece
em si-proprio personalidade nenhuma. Quando acaso
sente uma personalidade emergir dentro de si, cedo
vê que é um ente differente do que elle é, embora
parecido; filho mental, talvez, e com qualidades
herdadas, mas as differenças de ser outrem.

Que esta qualidade no escriptor seja uma for-
ma da hysteria, ou da chamada dissociação da perso-
nalidade, o author d'estes livros nem o contesta,
nem o appoia. De nada lhe serviriam, escravo como
é da multiplicidade de si-proprio, que concordasse
com esta, ou com aquella, theoria, sobre os resul-
tados escriptos d'essa multiplicidade.

Que este processo de fazer arte cause extra-
nheza, não admira; o que admira é que haja cousa
alguma que não cause extranheza.


        2.


Algumas theorias, que o author presentemente
tem, foram-lhe inspiradas por uma ou outra d'estas
personalidades que, um momento, uma hora, uns tem-
pos, passaram consubstanciadamente pela sua
propria personalidade, se é que esta existe.

Affirmar que estes homens todos differentes,
todos bem definidos, que lhe passaram pela alma
incorporadamente, não existem — não pode fazel-o o
author d'estes livros; porque não sabe o que é ex-
istir, nem qual, Hamlet ou Shakespeare, é que
é mais real, ou real na verdade.


Estes livros serão os seguintes, por emquanto:
Primeiro, este volume, "Livro do Desasocego", escrip-
to por quem diz de si proprio chamar-se Vicente Gue-
des; depois "O Guardador de Rebanhos" e outros poe-
mas e fragmentos do (tambem, e do mesmo modo, falle-
cido) Alberto Caeiro, que nasceu proximo de Lisboa
em 1889 e morreu onde nascera em 1915. Se me disserem
que é absurdo fallar assim de quem nunca existiu,
respondo que tambem não tenho provas de que Lisboa
tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou
qualquer cousa onde quer que seja.

Este Alberto Caeiro teve dois discipulos e um
continuador philosophico. Os dois discipulos, Ricardo
Reis e Alvaro de Campos, seguiram caminhos differen-
tes; tendo o primeiro intensificado e tornado artis-
ticamente orthodoxo, o paganismo descoberto por Caei-
ro, e o segundo, baseando-se em outra parte da obra
de Caeiro, desenvolvido um systema inteiramente dif-
ferente, e baseado inteiramente nas sensações. O con-
tinuador philosophico, Antonio Móra (os nomes são
tão inevitaveis, tão impostos de fóra como as perso-
nalidades), tem um ou dois livros a escrever, onde
provará completamente a verdade metaphysica e practi-
ca, do paganismo. Um segundo philosopho, d'esta escho-
la pagan, cujo nome, porém, ainda não appareceu na
minha visão ou audição interior, dará uma de-
feza do paganismo baseada, inteiramente, em outros
argumentos.

É possivel que, mais tarde, outros individuos,
d'este mesmo genero de verdadeira realidade, appare-
çam. Não sei; mas serão sempre bemvindos á minha vi-
da interior, onde convivem melhor commigo do que eu
consigo viver com a realidade externa. Excuso de dizer
que com parte das theorias d'elles concordo, e que
não concordo com outras partes. Estas cousas são per-
feitamente indifferentes. Se elles escrevem cousas


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bellas, essas cousas são bellas, independentemente
de quaesquer considerações metaphysicas sobre os au-
tores "reaes" d'ellas. Se, nas suas philosophias,
dizem quaesquer verdades — se verdades ha num mundo que é o não haver nada — essas
cousas são verdadeiras independentemente da intenção
ou da "realidade" de quem as disse.

Tornando-me assim, pelo menos um louco que so-
nha alto, pelo mais, não um só escriptor, mas toda
uma litteratura, quando não contribuisse para me
divertir, o que para mim já era bastante, contribúo
talvez para engrandecer o universo, porque quem,
morrendo, deixa escripto um verso bello deixou mais
ricos os ceus e a terra e mais emotivamente mysteri-
osa a razão de haver estrellas e gente.

Com uma tal falta de litteratura, como ha
hoje, que pode um homem de genio fazer, se não con-
verter-se, elle só, em uma litteratura? Com uma
tal falta de gente coexistivel, como ha hoje, que
pode um homem de sensibilidade fazer, se não inven-
tar os seus amigos, ou, quando menos, os seus com-
panheiros de espirito?

Pensei, primeiro, em publicar anonymamente,
em relação a mim, estas obras, e, por exemplo, es-
tabelecer um neo-paganismo portuguez, com varios
authores, todos differentes, a collaborar nelle e
a dilatal-o. Mas, sobre ser pequeno de mais o meio
intellectual portuguez, para que (mesmo sem incon-
fidencias) a mascara se pudesse manter, era inutil
o exforço mental preciso para mantel-a.

Tenho, na minha visão a que chamo in-
terior apenas porque chamo exterior a determinado
"mundo", plenamente fixas, nitidas, conhecidas e
distinctas, as linhas physiognomicas, os traços
de caracter, a vida, a ascendencia, nalguns casos
a morte, d'estas personagens. Alguns conheceram-
se uns aos outros; outros não. A mim, pessoalmente,
nenhum me conheceu, excepto Alvaro de Campos. Mas,
se amanhã eu, viajando na America, encontrasse su-
bitamente a pessoa physica de Ricardo Reis, que,
a meu ver, lá vive, nenhum gesto de pasmo me sahi-
ria da alma para o corpo; estava certo tudo, mas,
antes d'isso já estava certo. O que é a vida?