Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(181)

Sim, é o poente


16 e 17-10-1931

Sim, é o poente. Chego à foz da Rua da Alfândega, vagaroso e disperso, e, ao clarear-me o Terreiro do Paço, vejo nítido o sem sol do céu ocidental. Êsse céu é de um azul esverdeado para cinzento branco, onde, do lado esquerdo, sôbre os montes da outra margem, se agacha, amontoada, uma névoa acastanhada de côr de rosa morto. Ha uma grande paz que não tenho dispersa friamente no ar outonal abstracto. Soffro de a não ter o prazer vago de suppor que ella existe. Mas, na realidade, não ha paz nem falta de paz: céu apenas, céu de tôdas as cores que desmaiam — azul branco, verde ainda azulado, cinzento pálido entre verde e azul, vagos tons remotos de côres de nuvens que o não são, amarelladamente escurecidas de encarnado findo. E tudo isto é uma visão que se extingue no mesmo momento em que é tida, um intervallo entre nada e nada, alado, posto alto, em tonalidades de céu e mágua, prolixo e indefinido.

Sinto e esqueço. Uma saüdade, que é a de toda a gente por tudo, invade-me como um opio do ar frio. Ha em mim um extase de ver, intimo e postiço.

Para os lados da barra, onde o ter cessado o sol cada vez mais se acaba, a luz extingue-se em branco lívido que se azula de esverdeado frio. Ha no ar um torpor do que se não consegue nunca. Cala alto a paisagem do céu.

Nesta hora, em que sinto até transbordar, quizera ter a malícia inteira de dizer, o capricho livre de um estylo por destino. Mas não, só o céu alto é tudo, remoto, abolindo-se, e a emoção que tenho, e que é tantas, juntas e confusas, não é mais que o reflexo dêsse céu nullo num lago em mim — lago recluso entre rochedos hirtos, calado, olhar de morto, em que a altura se contempla esquecida.

Tantas vezes, tantas, como agora, me tem pesado sentir que sinto — sentir como angústia só por ser sentir, a inquietação de estar aqui, a saudade de outra coisa que se não conheceu, o poente de tôdas as emoções, amarellecer-me esbatido para tristeza cinzenta na minha consciência externa de mim.

Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ância como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. É todo o peso e toda a mágua d'este universo real e impossivel, d'este céu estandarte de um exercito incógnito, d'estes tons que vão empallidecendo pelo ar ficticio, de onde o crescente imaginario da lua emerge numa brancura electrica parada, recortado a longinquo e a insensivel.

É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadaver vacuo do céu alto e da alma fechada. Carcere infinito — porque és infinito, não se pode fugir de ti!