Quedar-nos-emos indiferentes à verdade


Quedar-nos-emos indiferentes à verdade ou mentira de todas as religiões, de todas as filosofias, de todas as hipóteses inutilmente verificáveis a que chamamos ciências. Tão-pouco nos preocupará o destino da chamada humanidade, ou o que sofra ou não sofra em seu conjunto. Caridade, sim, para com o "próximo", como no Evangelho se diz, e não com o homem, de que nele se não fala. E todos, até certo ponto, assim somos: que nos pesa, ao melhor de nós, um massacre na China? Mais nos dói, ao que de nós mais imagine, a bofetada injusta que vimos dar na rua a uma criança.

Caridade para com todos, intimidade com nenhum. Assim interpreta FitzGerald, em um passo de uma sua nota, qualquer coisa da ética de Khayyam.

Recomenda o Evangelho amor ao próximo: não diz amor ao homem ou à humanidade, de que verdadeiramente ninguém pode curar.

Perguntar-se-á talvez se faço minha a filosofia de Khayyam, tal como aqui, creio que com justeza, a escrevi de novo e interpreto. Responderei que não sei. Há dias em que essa me parece a melhor, e até a única, de todas as filosofias práticas. Há outros dias em que me parece nula, morta, inútil, como um copo vazio. Não me conheço, porque penso. Não sei pois o que verdadeiramente penso. Não seria assim se tivesse fé; mas também não seria assim se estivesse louco. Na verdade, se fosse outro seria outro.

Para além d'estas coisas do mundo profano, há, é certo, as lições secretas das ordens iniciáticas, os mistérios declarados, quando secretos, ou velados, quando os figuram ritos públicos. Há o que está oculto ou meio oculto nos grandes ritos católicos, seja no Ritual de Maria na Igreja Romana, seja a Cerimónia do Espírito na Franco-Maçonaria.

Mas quem nos diz, afinal, que o iniciado, quando íncola dos penetrais dos mistérios, não é senão avara presa da nossa nova face da illusão? Que é a certeza que tem, se mais firme que ele a tem um louco no que lhe é loucura? Dizia Spencer que o que sabemos é uma esfera que, quanto mais se alarga, em tantos mais pontos tem contacto com o que não sabemos. Nem me esquecem, neste capítulo do que as iniciações podem ministrar, as palavras terríveis de um mestre da Magia "Já vi Ísis" diz, "já toquei em Ísis: não sei contudo se ela existe".


Título: Quedar-nos-emos indiferentes à verdade
Heterónimo: Bernardo Soares
Número: 447
Página: 398 - 399
Nota: [1-4, misto];