oficina - Usa Jacinto do Prado Coelho(290)

Nunca durmo: vivo e sonho


L. do D.

2-5-1932

Nunca durmo: vivo e sonho, ou, antes, sonho em vida e a dormir, que também é vida. Não ha interrupção em minha consciencia: sinto o que me cerca se não durmo ainda, oú se não durmo bem; entro logo a sonhar desde que deveras durmo. Assim o que sou é um perpetuo desenrolamento de imagens, connexas ou desconnexas, fingindo sempre de exteriores, umas postas entre os homens e a luz se estou disperto, outras postas entre os fantasmas e a sem-luz que se vê, se estou dormindo. Verdadeiramente, não sei como distinguir uma coisa da outra, nem ouso affirmar se não durmo quando estou disperto, se não estou a dispertar quando durmo.

A vida é um novello que alguem emmaranhou. Ha um sentido nella, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um problema sem novello proprio, um embrulhar-se sem onde.

Sinto isto, que depois escreverei, poisque vou já sonhando as phrases a dizer, quando, atravez da noite de meio-dormir, sinto, junto com as paisagens de sonhos vagos, o ruido da chuva lá fora, a tornar-m'os mais vagos ainda. São adivinhas do vacuo, tremulas de abysmo, e atravez d'ellas se escoa, inutil, a plangencia externa da chuva constante, minucia abundante da paisagem do ouvido. Esperança? Nada. Do céu invisivel desce em som a magua agua que vento alça. Continuo dormindo.

Era, sem duvida, nas alamedas do parque que se passou a tragedia de que resultou a vida. Eram dois e bellos e desejavam ser outra coisa; o amor tardava-lhes no tedio do futuro, e a saudade do que haveria de ser vinha já sendo filha do amor que não tinham tido. Assim, ao luar dos bosques proximos, pois atravez d'elles se coava a lua, passeavam, mãos dadas, sem desejos nem esperanças, atravez do deserto proprio das aleas abandonadas. Eram creanças inteiramente, poisque o não eram em verdade. De alea em alea, silhuetas entre arvore e arvore, percorriam em papel recortado aquelle scenario de ninguem. E assim se sumiram para o lado dos tanques, cada vez mais juntos e separados, e o ruido da vaga chuva que cessa é o dos repuxos de para onde iam. Sou o amor que elles tiveram e porisso os sei ouvir na noite em que não durmo, e tambem sei viver infeliz.