Jacinto do Prado Coelho - edição anotada - Usa Jacinto do Prado Coelho(50)

Ha dias em que cada pessoa que encontro


L. do D.

Ha dias em que cada pessoa que encontro, e, ainda mais, as pessoas habituaes do meu convivio forçado e quotidiano, assumem aspectos de symbolos, e ou isolados ou ligando-se, formam uma escripta prophetica ou occulta, descriptiva em sombras da minha vida. O escriptório torna-se-me uma pagina com palavras de gente; a rua é um livro; as palavras trocadas com os usuaes, os deshabituaes que encontro, são dizeres para que me falta o diccionario mas não de todo o entendimento. Fallam, exprimem, porém não é de si que fallam, nem a si que exprimem; são palavras, disse, e não mostram, deixam transparecer. Mas, na minha visão crepuscular, só vagamente distingo o que essas vidraças subitas, reveladas na superficie das coisas, admittem do interior que velam e revelam. Entendo sem conhecimento, como um cego a quem fallem de côres.

Passando ás vezes na rua, oiço trechos de conversas intimas, e quasi todas são da outra mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou da amante d'aquelle, (...)

Levo commigo, só de ouvir estas sombras de discurso humano que é afinal o tudo em que se occupam a maioria das vidas conscientes, um tedio de nojo, uma angustia de exilio entre aranhas e a consciencia subita do meu amarfanhamento entre gente real; a condemnação de ser visinho egual, perante o senhorio e o sitio, dos outros inquilinos do agglomerado, espreitando com nojo, por entre as grades trazeiras do armazem da loja, o lixo alheio que se entulha á chuva no saguão que é a minha vida.