Deus creou-me para creança


L. do D.

Deus creou-me para creança, e deixou-me sempre creança. Mas porque deixou que a Vida me batesse e me tirasse os brinquedos, e me deixasse só no recreio, amarrotando com mãos tam fracas o bibe azul sujo de lagrimas compridas? Se eu não poderia viver senão acarinhado, porque deitaram fora o meu carinho? Ah, cada vez que vejo nas ruas uma creança a chorar, uma creança exilada dos outros, doe-me mais que a tristeza da creança no horror desprevenido do meu coração exhausto. Doo-me com toda a estatura da vida sentida, e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe, são minhas as boccas tortas das lagrimas verdadeiras, é minha a fraqueza, é minha a solidão, e os risos da vida adulta que passa usam-me como luzes de fosforos riscados no estofo sensivel do meu coração.


Título: Deus creou-me para creança
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 220
Página: 246
Nota: [1-37, dact.];