Edição do Arquivo LdoD - Usa (BNP/E3, 1-36r)

Ha dias em que cada pessoa que encontro


L. do D.

Ha dias em que cada pessoa que encontro,
e, ainda mais, as pessoas habituaes do meu con-
vivio forçado e quotidiano, assumem aspectos
de symbolos, e ou isolados ou ligando-se, for-
mam uma escripta prophetica ou occulta, des-
criptiva em sombras da minha vida. O escriptorio
torna-se me uma pagina com palavras de gente;
a rua é um livro; as palavras trocadas os encontros trocados com os
usuaes, os deshabituaes que encontro, são di-
zeres para que me falta o diccionario mas não
de todo o entendimento. Fallam, exprimem, porém
não é de si que fallam, nem a si que exprimem;
são palavras, disse, e não mostram, deixam trans-
parecer. Mas, na minha visão crepuscular, só
vagamente distingo o que essas vidraças subitas,
reveladas na superficie das coisas, admittem do
interior que velam e revelam. Entendo sem conhe-
cimento, como um cego a quem fallem de côres.

              -----------

Passando ás vezes na rua, oiço trechos de
conversas intimas, e quasi todas são da outra
mulher, do outro homem, do rapaz da terceira ou
da amante d'aquelle,

Levo commigo, só de ouvir estas sombras de
discurso humano que é afinal o tudo em que se occupam
a maioria das vidas conscientes, um tedio de
nojo, uma angustia de exilio entre aranhas e a
consciencia subita do meu amarfanhamento entre em
gente real; a condemnação de ser visinho egual, perante o senhorio
e o sitio, dos outros inquilinos do agglomera-
do, espreitando com nojo, por entre as grades
trazeiras do armazem da loja, o lixo alheio que se entulha
á chuva no saguão que é a minha vida.


(no chão de saguão que é a minha vida).