Deus creou-me para creança


L. do D.

Deus creou-me para creança, e deixou-me
sempre creança. Mas porque deixou que a Vida
me batesse e me tirasse os brinquedos, e me
deixasse só no recreio, amarrotando com
mãos tam fracas o bibe azul sujo de lagrimas
compridas? Se eu não poderia viver senão acarinha-
do, porque deitaram fóra ao lixo o meu carinho? Ah,
cada vez que vejo nas ruas uma
creança a chorar, uma creança exilada dos
outros, doe-me mais que a tristeza da creança
no horror desprevenido do meu coração exhausto
. Doo-me com toda a estatura da vida sentida,
e são minhas as mãos que torcem o canto do bibe,
são minhas as boccas tortas das lagrimas ver-
dadeiras, é minha a fraque-
za, é minha a solidão, e os risos
da vida adulta que passa lesam- me como luzes de
fosforos riscados no estofo enrugado rugoso sensivel do meu co-
ração.


Identificação: bn-acpc-e-e3-1-1-89_0075_37_t24-C-R0150
Heterónimo: Não atribuído
Formato: Folha (21.9cm X 16.3cm)
Material: Papel
Colunas: 1
LdoD Mark: Com marca LdoD
Datiloscrito (black-ink) : Testemunho datiloscrito a tinta preta, com a indicação "L. do D." a vermelho e revisões manuscritas a tinta preta.
Data: 1929 (low)
Nota: LdoD, Texto escrito no verso de uma folha do folheto "AVISO POR CAUSA DA MORAL" (Europa, 1923) de Álvaro de Campos.
Fac-símiles: BNP/E3, 1-37r.1