Edição Teresa Sobral Cunha - Usa Teresa Sobral Cunha(440)

Desde o princípio baço do dia quente e falso


Desde o princípio baço do dia quente e falso que nuvens escuras e de contornos mal rotos rondavam a cidade oprimida. Dos lados a que chamamos da barra, sucessivas e torvas, essas nuvens sobrepunham-se, e uma antecipação de tragédia entendia-se com elas do indefinido torpor das ruas contra o sol alterado.

Era meio-dia e já, na saída para o almoço, pesava uma esperança má na atmosfera empalidecida. Farrapos de nuvens esfarrapadas negrejavam na dianteira dela. O céu, para os lados do Castelo, era limpo mas de um mau azul. Havia sol mas não apetecia gozá-lo.

À uma hora e meia da tarde, quando se regressara ao escritório, parecia mais limpo o céu, mas só para um lado antigo. Sobre os lados da barra estava de facto mais descoberto. De sobre a parte norte da cidade, porém, as nuvens conjugavam-se lentamente numa nuvem só — negra, implacável, avançando lentamente com garras rombas de branco cinzento na ponta de braços sujos. Dentro em pouco atingiria o sol, e os ruídos da cidade parece que se abafavam com o esperá-la. Era, ou parecia, um pouco mais límpido o céu para os lados de leste, mas o calor fazia mais desagrado. Suava-se na sombra da sala grande do escritório. "Vem aí uma grande trovoada" disse o Moreira, e voltou a página do Razão.

Às três horas da tarde falhara já toda a acção do sol. Foi preciso — e era triste porque era verão — acender a luz eléctrica, primeiro ao fundo da sala grande, onde estavam empacotando as remessas, depois já a meio da sala, onde se tornava difícil fazer sem erro as guias de remessa e notar nelas os números das senhas de caminho-de-ferro. Por fim, já eram quase quatro horas, até nós — os privilegiados das janelas — não víamos agradavelmente para trabalhar. O escritório ficou iluminado. O patrão Vasques atirou com o guarda-vento do gabinete e disse para fora, saindo: "Ó Moreira, eu tinha que ir a Benfica mas não vou; vai-se fartar de chover". "E é lá desse lado", respondeu o Moreira, que morava ao pé da Avenida.

Os ruídos da rua destacaram-se de repente, alteraram-se um pouco, e era, não sei porquê, um pouco triste o som das campainhas dos eléctricos na rua paralela e próxima.