Qualquer deslocamento das horas


L. do D.

Qualquer deslocamento das horas usuaes traz sempre ao espirito uma novidade fria, um prazer levemente descomfortante. Quem tem o habito de sahir do escriptorio ás seis horas, e por acaso saia ás cinco, tem desde logo um feriado mental e uma coisa que parece pena de não saber o que fazer de si.

Hontem, por ter de que tratar longe, sahi do escriptorio ás quatro horas, e ás cinco tinha terminado a minha tarefa afastada. Não costumo estar nas ruas áquella hora, e por isso estava numa cidade differente. O tom lento da luz nas frontarias usuaes era de uma doçura improficua, e os transeuntes de sempre passavam por mim na cidade ao lado, marinheiros desembarcados da esquadra de hontem á noite.

Eram ainda horas de estar aberto o escriptorio. Recolhi a elle com um pasmo natural dos empregados, de quem me havia já despedido. Então de volta? Sim, de volta. Estava alli livre de sentir, sòsinho com os que me acompanhavam sem que espiritualmente alli estivessem para mim... Era em certo modo o lar, isto é, o logar onde se não sente.


Título: Qualquer deslocamento das horas
Heterónimo: Bernardo Soares
Volume: I
Número: 64
Página: 68 - 69
Nota: [1-51, dact.];